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Contos
09/03/2013 - 10h00
Em memória de Trajano Godoy
Marco Albertim
 

Deu–se que Trajano levantou–se de vez; levantou–se sem dar prumo às pernas tão conhecidas por sustentar os quase dois metros de altura, o tórax e o rosto tão quadrado quanto uma moldura sem curvas. O rosto mostrou–se convulso, os olhos fitos no chão e o suor encharcando a testa. Não que fosse dado a preocupações com o juízo que fizessem de si. De uns dez anos para cá, dera e vinha dando mostras de enfado no tórax. Por seu porte e modo elegante, fora brioso no cumprimento de tarefas. O ir e vir dos outros, enchera–o de conhecimento sobre o modo como cada um se desincumbia de sua atribuição.

Trajano não confessou o cansaço, inda que se sentando com as pernas cruzadas e os quadris colados ao encosto da cadeira dura, amaciado por outras costas que ali tinham apoio. Ele juntou na memória os traços de todos que cruzaram com ele a distinção de espreitar o fim da ditadura. Agora vivendo sem rebuços, deixou que o bolor dos olhos e a exaustão do juízo toldassem a apreciação dos novatos na inteireza de suas forças, do que podiam dar à peleja.

Levantou–se sem se despedir dos outros em volta da mesa, sem pagar a parte que lhe cabia na despesa. Os anos de militância deram–lhe rijeza no julgamento que tinha dos fatos, de cada um dos demais. A testa escura, sulcada, os olhos cobertos por sobrancelhas grisalhas, um ou outro fio de negrume sedoso, tornavam–no suscetível ao indulto; mais ainda em se tratando de um pecadilho sobrevivente do tempo em que, com robustez, enfrentara a persuasão religiosa do coronel Ibiapina no manuseio da manivela elétrica.
Trajano levantou–se depois de entornar três doses de gimpari. A proeza semântica, assim o cria, servia de despiste para que não o flagrassem no uso sem cálculos da bebida. Juntar no mesmo copo a genebra com o Campari fora fácil de intuir na prostração das ideias; não o bastante; fora preciso dar–lhe um nome para que o sabor se tornasse sonoro e distraísse quem o espreitasse perto do juízo final.

Luiz Quadros, na mesa, foi o primeiro a esboçar indulto pelo sumiço de Trajano. Não tanto pela moldura dos anos nos costados dele, inda que o traço fosse visível e refulgisse no tronco cheio, em forma de baú, de Luiz Quadros; mas pela circunstância de que a irmã de Trajano, noutra época, fora casada com ele, Luiz Quadros. Ela, acrescente–se, fez pouco caso da certidão de casamento, assim que notou os sinais de desaprumação nas pernas do marido.

Trajano virou a esquina ajudado pelo susto de se crer tão mortal quanto um crente; ele incréu, acima de crenças vãs. O vento abanou–o nas pernas sob a bermuda, e convenceu–o de que o traje apenas o ajudara a tramar o consórcio entre a genebra e o coquetel já pronto na garrafa.

Três dias depois, o mesmo vento que soprara dali os passos de Trajano, trouxe a notícia de que ele, em casa, não conseguira segurar a xícara de café para levar à boca. O tremor das mãos, numa das vezes, salpicara o pijama listrado com manchas marrons do café.

Luiz Quadros, com os olhos pontudos na vermelhidão do uísque, disse com a familiaridade própria de quem fora membro da família de Trajano Godoy; disse como se os pulmões de Trajano, infensos a achaques, não respirassem no mesmo ritmo do enfado no tórax.
– Trajano tem a couraça de um bolchevique! – sentenciou sem evitar os salpicos de saliva sobre a mesa.
– Já aconteceu outras vezes – emendou o garçom. – Trajano Godoy não vai abotoar o paletó sem deixar escorrer o último pingo daquelas duas garrafas.

Apontou para a prateleira de verniz escuro do Scotch Bar, onde as duas garrafas – Gim e Campari – luziam a metade do conteúdo à espera do usuário.

Luiz Quadros, ao casar–se com a irmã de Trajano, não fizera caso com a recusa da nubente em trocar o nome na certidão de casamento. Creu–se capaz de recuperar o passado.
– Se Trajano abotoar o paletó, ninguém, nenhum de nós terá o direito de usurpar o direito que ele ganhou de provar o conteúdo daquelas duas garrafas. Elas serão mantidas no mesmo lugar, feito dois ícones em sua memória!

Trajano morreu no hospital. Os amigos não o visitaram nos três dias em que esteve internado. Não tiveram paciência de sentar na sala de espera, à hora autorizada para visitas.
– Não me rendo à doença de Trajano Godoy! – arguíra Luiz Quadros.

O garçom do Scotch Bar foi ao velório. Ao entrar na sala onde o ataúde fora posto, cruzou com Luiz Quadros sob o umbral. A modo de cumprimento, Luiz Quadros fez um esgar com os lábios abertos, mostrando os dentes trincados; depois ajuntou:
– É assim que ele está esperando por você.

À noite, no bar, o garçom, único a não beber, tirou da prateleira a bebida da estima de Trajano Godoy. Despejou–a até ocupar metade do copo, o mesmo copo de uso de Trajano.
– Bebo à memória de Trajano Godoy. Ele queria me recrutar para o Partido. Eu recusei. Hoje ninguém paga a conta. Deixem que descontem no meu salário.

Bebeu tudo de uma vez e chorou convulso.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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