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Contos
16/02/2013 - 15h08
O beijo da dama
Marco Albertim
 

A dama de vermelho despiu-se à sombra do coqueiro. No terraço de sua casa, inda que fosse noite, imaginou o dia descortinando a palidez de sua pele, salpicando-a de suores quentes. Sorveu o sopro da noite, nutrindo-se da mesma energia que deixara nu o peito em riste da parisiense, tão duro quanto os muros da Bastilha. Nenhum fuzil na mão esquerda, sequer um lenço vermelho à moda de estandarte na outra mão; em vez do sans-culotte com uma pistola em cada mão, viu o espectro do parelho se aproximando, medindo forças com a amplitude da sombra do coqueiro. Na precisa hora em que se deu conta do perfume lenhoso dele, deixou cair na frieza do chão o lume vermelho de sua camisola.

Ele não quis se ver livre da roupa, posto que a sofreguidão da carne embotaria o juízo que fizera de seu corpo. Urdira o corpo da dama, aprumado e sinuoso à exploração de seus olhos de revolucionário. Mudo, apreciando-a, também mediu os próprios passos no horizonte de pouco mais de dois metros separando-o da dama.

- Trouxe-lhe vinho. Combina com o frescor da noite. Você já está banhada pelo vento. Agora vai lubrificar suas entranhas.

- Você é gentil. Mas o vinho assim, feito uma oferenda, vai me confundir com uma divindade. E agora eu sou pagã, graças ao rogo de seus olhos eu sou pagã.

- Você é uma deusa enquanto tem dois olhos que dão o prazer de uma busca perto do fim.

- Não me chame de deusa. Assim eu perco o encanto de me sentir mortal.

O recobro da finitude encheu-a de sedução. Ela estendeu-lhe o braço. Àquela altura, ele sentara-se num pufe sob o limiar da sala e do terraço, conformando a pequenez de seu exame à profusão do corpo miúdo da parelha. Teve pena de se levantar, crendo na incompletude de seus sentidos para dar conta da força encerrada nos cabelos curtos dela, na planura de seus ombros.

Há um mês, ele a encontrara no meio de uma multidão difusa, tão atônita quanto pouco atenta a venturas do juízo ou devaneios da carne. Num vestido verde com quadrículas finas, vermelhas e luzentes, já acenando para o uso de um tecido rubro, feito o indício de uma promessa de sangue. Não lhe prometera nada, nada que a finitude da palavra fosse o sinal de uma reticência prenhe de adivinhações. Só o rosto redondo, o batom discreto imiscuindo-se nas comissuras dos lábios; emoldurando o riso quase estridente, não ruidoso, inda que em sintonia com os olhos capturando o passado em que o vira pela última vez.

- Nunca nos aproximamos. - dissera contrafeita, recuperando-se na franqueza da lembrança - Mas agora me lembro do quanto você era sério.

- Não era seriedade, era a submissão à franqueza de seu riso.

Ela rira, submetendo-o à curiosidade de saber se de seu humor, junto com o rebuliço da memória, também deixara escapar uma gota de zombaria. Despediram-se com escassos votos de reatar uma amizade que nunca existira, a não ser com a inquirição muda dos olhos, já vazia de perguntas poucos anos depois de o sino da matriz bater insistente, queixando-se de sua ausência no meio de mulheres cegas de tanta reza.

A dama, sem o sonho de ser dama, sumira feito o semblante da mulher que se deixa engolir pelo horizonte, no final da rua onde sonhar não é permitido, a não ser para pôr fim à inquietação do corpo que se entrega cego, e depois reclama da conjura dos homens.

Oito anos depois, como no intervalo de uma refrega, inda que se respirasse a paz dos cemitérios, viu-o ser empurrado por homens fardados num cáqui adverso à palidez da terra onde deixara crescer seu primeiro trevo. Os homens, armados, jogaram-no num xadrez por certo carregado do bodum frio dos esgotos. Antes de embolar no chão escuro, o ferro retangular da cela, uma de suas margens, abriu uma fenda acima de seu cílio direito.

Do lado de fora da Cadeia Pública, a turba silenciosa de camponeses se perguntava dos motivos da prisão de um moço que, sem nada dizer, distribuíra panfletos na assembleia que decidira por uma greve.

Agora, a dama de vermelho, tornando a vestir a camisola da mesma cor do sangue que dele escorrera, ajudando-o a levantar-se do pufe, puxou-o com a mão. O contato deu-lhe a certeza de temperar-se no mesmo calor do sangue perdido no xadrez. Juntos, ela abaixou a cabeça do parelho e beijou suave a cicatriz acima do cílio.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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