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Contos
05/02/2013 - 09h00
Uma freira do barulho
Jorgenete Pereira Coelho
 

Nasci numa família católica. Minha mãe foi criada em colégio interno dirigido por freiras, assim como suas irmãs. Eu também estudei em colégio de freiras durante quase toda vida, mas não era interna, ia e voltava todos os dias. Existia o internato, porém grande parte das alunas não morava lá, ia apenas no horário das aulas.

Houve uma época em que as famílias mandavam os filhos para o colégio interno por vários motivos: para que tivessem uma educação de qualidade, porque nos lugarejos não havia escola, porque os filhos eram rebeldes ou por falta de condições financeiras para criá-los. Havia internatos de ricos e de pobres, de meninos e de meninas, e a maioria era dirigida por religiosos. Minha avó mandou as filhas, por ter ficado viúva muito cedo e, com dez filhos, se viu impossibilitada de sustentá-los e de educá-los. Assim, minha mãe e suas seis irmãs foram para o internato em Paraíba do Sul e os três meninos ficaram em casa para ajudar na lida: roçar, limpar o terreiro, buscar lenha, tratar das galinhas, pegar o leite no curral da fazenda. A família morava numa casa de colonos da Fazenda de São Luiz da Boa Sorte, lá pelas bandas de Vassouras. Meus três tios estudaram na escolinha da Fazenda mesmo até a quarta série.

À medida que iam ficando mocinhas, iam retornando à casa. Já haviam concluído a escolaridade mínima e desejada para a época e o mais importante já haviam aprendido no internato: prendas do lar. No colégio era ensinado todo tipo de trabalho manual desde o mais simples ato de pregar botões até o mais complexo bordado.

Minha mãe contava que a disciplina era rígida. As freiras não davam moleza, não. As internas acordavam às cinco da manhã, rezavam, assistiam à missa (celebrada em Latim), tomavam o café da manhã, faziam a limpeza das dependências do colégio divididas em grupos, iam para as salas de aula (as professoras eram todas freiras também) e estudavam durante quatro horas. Depois almoçavam e à tarde aprendiam canto, costura, crochê, tricô, bordado, pintura em tecido, desenho e língua estrangeira (minha mãe sabia falar Francês até bem bonito). À noitinha, rezavam de novo, tomavam o banho (e não eram todos os dias), jantavam e iam para a cama. Ai de quem desse um pio nos dormitórios, na certa ficaria de castigo. As freiras vigiavam o tempo todo. As meninas não podiam conversar em tom de segredo, pois as freiras diziam que elas estavam falando de coisas indecentes. Acho que a indecência estava só na cabeça das freiras. As meninas daquela época não conheciam nada, absolutamente nada da vida. Eram bem diferentes das meninas de hoje que sabem de tudo e mais um pouco.

Aos domingos, as alunas que morassem na cidade ou nas proximidades, podiam ir visitar suas famílias. As que moravam longe só iam para casa no período de férias. Se os pais não pudessem ir visitá-las no internato, elas ficavam meses sem vê-los. Ai, que vida triste! Eu não suportaria ficar longe de minha família. Ainda bem que comigo foi diferente.

Minha mãe e minhas tias cresceram, algumas ficaram em casa ajudando minha avó, outras foram trabalhar fora e, pouco a pouco, todas se casaram. Todas não. Quase todas. A caçula, a tia Carmem, decidiu que continuaria no colégio e que se dedicaria à vida religiosa. É aqui que essa história começa, verdadeiramente.

Tia Carmem tornou-se freira aos dezenove anos de idade. Isso foi há mais de 75 anos. Ela ingressou na Congregação de São Vicente de Paulo na década de 1930 e, durante toda sua vida de religiosa, trabalhou em colégios, orfanatos, ambulatórios e hospitais de muitos lugares do Brasil.

Quando conheci minha tia, eu devia ter uns sete anos. Ela passava muito tempo sem nos visitar, pois, às vezes, estava servindo em cidade muito distante: trabalhou por mais de dez anos em Salvador, na Bahia; esteve em Recife; em Niterói; no Rio de Janeiro e mais em tantas cidades que nem me lembro.

Minha estranheza foi total quando vi aquela mulher chegando em minha casa, com aquela roupa preta estranha, com um “chapéu” enorme (naquela época ainda usava aquele modelo de véu que parecia chapéu de traje típico holandês), com um baita crucifixo pendurado no pescoço. As freiras que eu conhecia não usavam um hábito tão esquisito como o dela. Mais estranho ainda eu achei, foi que minha mãe a apresentou como sendo a Irmã Zoé. “Ué, o nome dela não é Carmem?”. O que eu ainda não entendia é que freira também tem “nome artístico” (hoje pode usar o nome de batismo). E as coisas esquisitas não pararam por aí. Mamãe reservou um quarto só para ela - o meu quarto, diga-se de passagem. Minha irmã e eu tivemos que dormir no quarto de mamãe e papai. E pior, o quarto ficava trancado o tempo todo, não podíamos saber o que ela fazia lá dentro. Nem durante as refeições a tia saía do quarto, minha mãe levava uma bandeja com o café da manhã, outra com o almoço e outra com o jantar. Eu pensava: “Qual é o segredo dessa dona?”

Eu não me aguentava de tanta curiosidade. Queria, porque queria, descobrir qual era o mistério. Às vezes, ela saía do quarto, sentava na sala, conversava com a gente. Entretanto, não tirava aquela sua roupa comprida, esquisita, que me deixava nervosa de imaginar o calor que deveria estar sentindo (ela vinha sempre em janeiro). Quando falava, achava tão engraçado que muitas vezes eu ria e ela dizia:

- Por que essa bichinha está rindo?

Mamãe falava que era bobagem de criança, mas minha tia me olhava de cara feia.

Certa vez, não aguentando mais de curiosidade, entrei escondida no quarto aproveitando uma distração dela e de mamãe. Fiquei lá, quietinha, debaixo de uma escrivaninha, só esperando pra ver o que ela fazia. Quando ela entrou, meu coração disparou e pensei: “Como é que vou sair daqui se ela trancar a porta?”. Ela começou a tirar a roupa: tira uma peça, tira duas, tira três, tira véu, tira cinto, tira meia, fica de combinação e de calçola, que ia até quase nos joelhos, e eu nervosa esperando o que viria. De repente, ela dá um grito:

- Jove! Acuda! Essa bichinha tá aqui dentro do quarto bulindo nas minhas coisas! Passa menina, passa!

“Fui pega em flagrante. Estou lascada!”

Mamãe veio lá de dentro uma fera:

- O que é isso, menina? O que você estava fazendo aí no quarto da Irmã Zoé?

“Ah, que palhaçada! Por que mamãe não fala Carmem?”

Saí correndo, fui me sentar ao lado de papai, no sofá, que assistia ao seu Repórter Esso. Aliás, sempre que me metia em apuros corria para perto de papai, porque ele não deixava ninguém me bater.

Essa foi a primeira vez que tentei desvendar o mistério de minha tia. Tentei outras vezes, mas não consegui saber por que ela tinha de ficar isolada dentro de minha casa.

Um dia, mamãe sentindo minha inquietação, resolveu me explicar:

- Minha filha, não há mistério nenhum com sua tia. Ela é uma Irmã de Caridade, é quase uma Santa, e precisa estar recolhida em oração.

- Mas, mãe, por que ela nem pode sentar com a gente pra comer? - perguntei.

- Porque é assim. As freiras não devem dividir sua intimidade com ninguém.

- Por que não, mãe?

- Porque Deus não gosta.

- Por que você “chama ela” de Irmã Zoé? Ela não é sua irmã de verdade?

- Sim. Ela é minha irmã caçula, mas eu devo chamar pelo nome de freira em sinal de respeito. E você também deve chamá-la de Irmã Zoé, ouviu? Não a incomode com perguntas, não entre em seu quarto (“meu quarto, ora bolas!”), não fique olhando pelo buraco da fechadura (“ih, minha mãe já descobriu que eu fico olhando pelo buraco!”). Isso tudo é pecado. Deus vai ficar zangado com você. - disse minha mãe, me intimidando.

“Ah, tudo muito difícil de compreender: uma tia que não posso chamar de tia, que fica escondida o dia inteiro, que nem brinca comigo, que só me olha de cara feia, que fala esquisito, que só me chama de bichinha. Minha mãe ainda diz que ela é quase santa. Eu, hein!”

Depois de dois anos sem nos visitar, tia Carmem, ou melhor, Irmã Zoé, reapareceu. Dessa vez, trouxe uma amiga e um menino que era do orfanato em que trabalhava em Salvador. Beto, o menino, era um negrinho lindo, esperto, inteligente. Gostei dele de cara e a gente se divertiu muito durante as semanas em que ficaram lá em casa. Minha tia também estava menos zangada dessa vez, já não passava tanto tempo enfiada dentro do quarto, participava mais das atividades da família e até fazia as refeições junto com a gente. Mas continuava falando cada vez mais esquisito. Era um tal de “tô vexada”, “tá bulindo”, “tô aperreada”, “visse”, “aboletado”, “macaxera”, “Vigi Santa”. Continuava me chamando de bichinha e eu não gostava nem um pouco disso. Mas percebi que não era nada pessoal, porque ela chamava todas as crianças assim: menino era bichinho e menina era bichinha. Depois de muito tempo fui compreender que aquele jeito de falar era sotaque nordestino, adquirido por ter vivido muito tempo no Nordeste.

Alguns anos se passaram e a freira voltou. Agora totalmente diferente: o hábito não era mais aquela roupa volumosa, cheia de peças, o véu era mais simples (ela até podia tirar e deixar os cabelos à mostra quando estivesse em casa), ela chegou para ficar três meses.

Nessa altura do campeonato, eu já era uma adolescentezinha debochada e questionadora e a relação com minha tia não era nada amistosa. Ela era muito implicante com minhas roupas, com meu jeito de ser e de falar gírias e vivia fazendo futrica com minha mãe sobre mim. Mamãe, às vezes, me repreendia sem motivo algum, só para “agradar” a titia. “Ai, que ódio!”

Nossa convivência não foi só estresse nesses três meses. Houve momentos de trégua e alguns até bem agradáveis. Minha tia tocava violão e eu adorava cantar com ela. Lembro-me que ela me ensinou a canção do Sabiá, da qual ainda me lembro: “Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho, voou, voou, voou / e a menina que gostava tanto do bichinho, chorou, chorou, chorou / sabiá fugiu pro terreiro, foi cantar no abacateiro / a menina vive a chamar vem cá, sabiá vem cá / a menina diz soluçando, sabiá estou te esperando / sabiá responde de lá, não chore que eu vou voltar”. Lembrar disso é bom!

A freira ia e voltava todos os anos. Quando ela avisava, por carta ou telegrama, de que iria chegar dia tal, a gente logo pensava: “Lá vem a freira do barulho!”. Cada vez que chegava era uma tortura para mim, pois ela vinha cada vez mais implicante, brava, brigona. Mamãe ficava sem saber o que fazer ou falar, porque a gente não se combinava de jeito nenhum. O pior é que não era só comigo, não. Minha tia tinha o dom de irritar as pessoas. Ela colocava defeito em tudo e em todos, reclamava da comida, reclamava do barulho das crianças (meus sobrinhos que moravam na casa dos fundos), xingava (já viu freira falar merda?), era mesmo rabugenta. E ela sabia como ofender: usava aquilo que mais incomodasse a gente. Eu, por exemplo, tinha o maior complexo de o meu cabelo ser crespo, pois era aí que ela me machucava. Gostava também de jogar na minha cara que eu não era filha verdadeira da minha mãe. Ficava perguntando pelo meu pai biológico, que era sobrinho dela, e falando mal dele e de toda família. Eu sabia que era filha adotiva e que, na verdade, a mãe que me criou era minha tia-avó, ou seja, irmã de meu avô por parte de pai. Mas eu não gostava de tocar nesse assunto. Durante minha adolescência isso mexia muito comigo. Pois a danada da freira fazia questão de me lembrar disso a toda hora. Às vezes eu pensava: “Como é que pode uma freira, uma mulher de Deus, ser assim tão cruel? Ela era a pessoa mais indiscreta que eu conhecia. Sabia ser desagradável com as pessoas, daquelas de fazer comentários de arrasar com a autoestima de qualquer um, tipo: “Você tá gorda!”, “Você tá envelhecida!”, “Seu namorado é feio!” enfim, quase sempre era uma frase de deixar a gente sem graça e sem rumo.

Os anos foram passando, me tornei adulta, casei, tive filhos e, com o amadurecimento, passei a ver as coisas de outro jeito. Quando minha tia vinha nos ver, agora já bem mais velha também, procurava ter mais paciência e tolerância com ela. Ensinei meus filhos a respeitá-la. Era difícil segurar os meninos para que eles não fossem malcriados com ela, porque a danadinha provocava.

Depois de tantos anos, fico pensando em como pode ter sido a vida da freira longe da família desde criança. Talvez ela tenha passado por muitas histórias tristes, ruins. Talvez tenha sido muito solitária. Talvez tenha sido tratada sempre com rigor, rispidez, sem nenhum carinho. Em suas andanças pelo Brasil, deve ter presenciado muita miséria, promiscuidade, abandono, alcoolismo, violência que foram, pouco a pouco, fazendo dela uma pessoa dura, áspera, indelicada. Talvez ela até quisesse ser mais dócil, mais compreensiva, mais gentil, mas não conseguia ser, porque talvez não tenha conhecido a docilidade, a compreensão, a gentileza.

Hoje sei que não devemos fazer pré-julgamento sobre as pessoas sem conhecer, de fato, sua história de vida. Não é porque uma pessoa é freira, que ela tem de ser santa. A Santidade não é para todas as pessoas. Só alcança a Santidade quem consegue superar as fraquezas da condição humana (e são tantas as fraquezas: a maledicência, a inveja, a revolta, a mágoa, a incompreensão, a falta de humildade, a falta de caridade e tantas outras). Talvez minha tia não tenha conseguido superar as suas.

Aos noventa e sete anos, ela está hoje em uma casa de repouso para freiras no Rio de Janeiro. Ela é a única irmã viva de minha mãe, falecida há quatro anos. Sem condições de viajar, devido à saúde frágil, não vem mais nos visitar. Minha irmã conversa com ela, de vez em quando, ao telefone. Mas parece que ela não perdeu aquele seu jeitinho peculiar de ser e sempre “solta os cachorros” em cima de minha irmã:

- Até que enfim você ligou, sobrinha desnaturada! Pensou que eu tivesse morrido? Ainda tô vivinha! E aquela outra desmiolada, como vai? Ainda está casada ou já largou do marido outra vez? (Saibam que eu sou a desmiolada, por ter me separado e casado de novo).

Toda família tem suas histórias e personagens interessantes. Essa foi uma das histórias de minha família que, com essa personagem tão polêmica, sempre tem muitas passagens engraçadas pra lembrar.

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