Era uma doce velhinha que, mesmo aos sessenta anos, tinha uma suave e comovente beleza. Nem os sofrimentos (e duros tempos de privações) conseguiram comprometer essa característica natural, que a fazia notada onde quer que estivesse. Os desgastes naturais da vida, em vez de enfeiarem-na, só realçaram a suavidade dos seus traços eslavos, dando-lhes um toque peculiar de dignidade, aquele que determinados anciãos refletem em sua fragilidade. Frágil, sim, mas não fraca. Lembro-me nitidamente de tudo o que lhe diz respeito, principalmente de sua voz mansa, cheia de amor, característica sublime e mágica de quem era duplamente mãe (porquanto era avó), que vezes sem conta, num passado já tão remoto, acalmou meus inexplicáveis e infantis temores. Era como se tudo o que dissesse soasse como a música de Orfeu. E soava. Tinha o poder de acalmar e de adormecer a fera que se escondia em meu inconsciente. Suas mãos, firmes e ágeis, apesar da idade, estavam sempre prontas a socorrer, a ajudar, a acudir, a fazer coisas, a acariciar, a realizar qualquer trabalho, por árduo que fosse, desde que redundasse no conforto e na segurança dos que amava. Era dessas mãos abençoadas e providenciais, das quais o mundo anda tão carente. Seus olhos, cansados pelas incontáveis noites insones em que passou entretida na costura, para que os filhos pudessem ter sempre algo novo e elegante para vestir e assim se sentirem notados, importantes, amados e admirados até, tinham uma suave coloração esverdeada, da cor da esperança, de que, aliás, nunca abriu mão. Escondiam, em seu interior, mistérios orientais de grandeza e beleza. Refletiam, sobretudo, bondade. Apesar de algumas sombras, mostravam inusitada vivacidade, a de quem ama a vida e que, por isso, quer captar do mundo todas as imagens possíveis, mesmo as que não forem agradáveis à vista. Mal sabia, essa doce velhinha, dos infortúnios que os acontecimentos posteriores iriam lhe reservar, nas três derradeiras décadas da existência. Desconhecia a mágoa que teria que suportar, de precisar dividir-se, de ter que partilhar pensamentos e emoções por dois hemisférios da Terra, duas civilizações diferentes, dois países heterogêneos, cada qual com seus costumes, tradições e peculiaridades. Por uma contingência familiar que fugia de seu controle, teve que regressar à sua Rússia natal, deixando para trás filhos e netos, mesmo que revendo e tornando a conviver com parentes que julgava que nunca mais veria. Nos trinta e um anos seguintes, essa doce velhinha, tão meiga e amorosa, teve que se contentar, apenas, com raras fotografias que recebia dos entes queridos que ficaram tão distantes, com esparsas e cada vez mais raras cartas e, sobretudo, com algo que ninguém, jamais, poderia lhe tirar: as lembranças que trazia vivas na memória e que tornavam a saudade presença constante e cada vez mais pungente. No final de um outono europeu, quando as árvores começavam a perder as folhas e a natureza a vestir-se de “gris”, precedendo outro duro inverno russo, seus olhos, agora opacos, apagaram-se, de vez, para a luz do dia. Suas mãos, já trêmulas e inseguras, quedaram, finalmente, inertes, elas que tanto haviam feito pelas pessoas que amou. Sua voz, mansa, mansa, foi se esvaindo, tornando-se murmúrio, declinando para sussurro, até parecer simples sopro inaudível. Mas seguiu abençoando filhos e netos tão distantes, do outro lado do mundo, até se apagar e silenciar. Na noite em que ela se foi, minha filha mais velha, sua bisneta que ela não conheceu a não ser por fotografia, observou uma determinada estrela, que seria capaz de jurar que não estava ali na noite anterior. Era extraordinariamente brilhante, a reluzir na direção do Norte. Não sei explicar por que, mas pensei, de imediato, nessa velhinha tão suave, tão amorosa e tão querida, que há já trinta e um anos habitava apenas em minha memória, como se me acompanhasse onde quer que eu fosse e me protegesse de alguma maneira contra os perigos e agruras da vida. Creio que protegia de fato. Que relação essa criatura benfazeja tinha com a estrela? Eu não sabia explicar. Mas intuía que tinha alguma. Subitamente, ouvi uma voz bem pertinho de mim, próxima ao meu ouvido, que não era a de minha filha, que permanecia em silêncio a olhar para o céu. “Mas como?”, perguntei-me perplexo e assustado, temendo estar sofrendo algum delírio, justo eu que nunca fui dado a nenhum tipo de fantasia. E a voz era mansa, mansa, como a que ouvia amiúde, há muitos e muitos anos, quando triste ou com medo de seres imaginários, que poucos anos depois me convenci que não existiam. E ela disse-me, somente: “Deus o abençoe! Adeus!”. Tive, naquele instante, horrível sensação de irreparável perda, embora, objetivamente, não houvesse absolutamente nada que sequer sugerisse essa possibilidade. Lembro-me como se fosse hoje: era a noite de 31 de outubro de 1984. Duas quentes lágrimas escaparam dos meus olhos e rolaram-me pela face até a boca. E eram ácidas, salgadas, amargas e doridas. Eram lágrimas de despedida. Poucos dias depois, recebi carta dos parentes da Rússia dando conta do falecimento da minha avó. E não me surpreendi quando soube a data da sua morte. Ela aconteceu exatamente em 31 de outubro de 1984. Não sei explicar racionalmente como, mas estou seguro, seguríssimo que, de alguma forma, ela voltou para me dizer adeus e dar-me sua última bênção de avó. Querem saber? Às favas com a racionalidade! Nota do Editor: Pedro J. Bondaczuk é jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” - pedrobondaczuk.blogspot.com.
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