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Contos
23/01/2013 - 15h01
Dia de posse
Marco Albertim
 

No sereno da noite, a inhaca se acomodara nas sentinas, nos esgotos. O vento não soprara, meio que sonolento, tão doentio quanto os achaques nos vãos da rua. No interior das casas, protegidos por janelas com frestas inclinadas para baixo, os moradores se criam imunes a doenças, inda que cada um tivesse seu achaque.

Há um mês o lixo se amontoara na rua Direita. Nos dois únicos bares, um paralelo ao outro em duas esquinas, não se ouvira queixa. Os frequentadores, bêbados ou não, tinham crostas nas narinas; não de poeira, mas do bodum sorvido, acumulado no dia a dia. Por trás das paredes onde as prateleiras davam conta de garrafas ainda cheias, os depósitos tinham-nas vazias, sem tampo; o vapor da bebida consumida insistia em exumar libações da véspera, de uma ou duas semanas, quando o caminhão do fornecedor demorava na entrega de bebidas novas. Os donos, cada um usando camisa branca, amarelecida àquela altura pelos suores, moviam-se feito adornos vivos, os cabelos para cima, semelhantes a gravetos de cenários mortos. Em casa, as esposas espremiam as camisas na espuma do sabão, só por dever de ofício; ou para se crerem zelosas do marido.

O sereno dera lugar à luz. O sol fremiu mudo, inconfesso. Joventino, o dono de um dos bares, cumprimentou o concorrente do outro lado da rua. Morais, crendo-se um igual, suspeitou-se superior porque sobre a camiseta branca pusera outra, amarelo vivo, nada desbotado, com botões de cima a baixo, soltos das pregas no lado oposto da camisa. Com a luz, o calor removeu de cada canto da rua o mau cheiro que a noite escondera.
- Hoje o vento sopra? - quis saber de Joventino.
- Toninho Bacuri me disse que não vai pra maré. É sinal de que não vai ventar.
- Ele já passou?
- Passou. Foi vender o peixe pescado anteontem.

A primeira missa do ano, os dois vendeiros assistiram-na de longe, espreitando os gestos do padre na batina marrom, coberta pelo véu branco, rendado, da alva. Não o distinguiram ajoelhado sob o sacramento, mas viram-no entrar na igreja sem espremer as narinas, sacrificando-as ao bafio do cheiro malsão; não convinha, não sem embaraço, infringir a solenidade dos gestos, inda que a cem metros da luz do Sagrado Coração.

Os devotos, juntando os temores do juízo à fraqueza do corpo, subiram a calçada da igreja, sumindo no frescor sem luz da abóbada com anjos seminus. As velhas, cobrindo a cabeça com um véu escuro, cobriam o rosto com o mesmo recurso, pressionando as narinas com os dedos. Os velhos, com o juízo desnudo, certos de que a sobrevida fora obtida graças ao prumo dos pés e das mãos, sem rubor seguravam as narinas. As crianças, aturdidas, não sabiam a quem seguir.

Com o fim da missa, as velhas foram para casa levando as crianças. Os velhos, meia dúzia deles, no prumo das ideias e donos dos sentidos, foram para o bar de Joventino. Toinho Bacuri voltara da feira, onde vendera a fieira dos peixes pescados na véspera. Tomou o primeiro trago de cachaça, legitimado pelo dia feriado, pelo esforço matreiro na pesca da traíra.

Jonas Taborda, que perdera a eleição, prevendo o embaraço de ter que entregar o cargo ao adversário, descumprira o pagamento da empresa responsável pela coleta do lixo. A entrega do cargo teria que ser na prefeitura, ali mesmo na rua Direita, a do casario barroco; como testemunhas, Joventino, Morais, a freguesia de cada um, esponjosos cronistas.

Abreu de Souza, o prefeito eleito, vira o lixo se acumular; no começo, papéis soltos, copos descartáveis, tiras de borracha de uso nos armários da prefeitura, nos birôs; clipes cujo metal piscava na noite escura feito pirilampos. Em seguida, nos cantos das paredes, como um local apropriado para cusparadas, apareceram cascas de bananas, de laranjas e de abacaxis; as de laranjas logo secavam sob o calor; as de bananas, de abacaxis, antes de estorricar, eram o cardápio de moscas, de um guabiru ou outro desperto do sono nos esgotos. Joventino e Morais avistaram-nos, logrando pouca prosa em seu juízo de cronistas, visto que no piso de cada bar as baratas corriam tontas, deixando um rastro de excrementos miúdos.

Por fim, quatro horas da tarde. Jonas Taborda sumira de Calumbi com a família; fora para sua casa de praia em Pitimbu. Ordenara ao chefe da Guarda Municipal que abrisse a porta da sede da prefeitura. Olegário, com a farda azul-escuro, brilhoso, o quepe da mesma cor, abriu a enorme porta de madeira, não se atrevendo a entrar e pondo dois olhos indecisos na comitiva de Abreu de Souza. Abreu de Souza, convém dizer, jurara assumir mesmo que fosse preciso subir à torre da igreja pelo lado de fora.

A porta não abriu toda, não foi possível. Birôs, cadeiras, tudo amontoado e poeira, muita poeira. Sentiu-se um cheiro de mofo. Abreu de Souza, os secretários ainda não nomeados, as esposas, foram para o bar de Joventino. Antes que o prefeito eleito prometesse vindita no seu discurso, o padre que rezara a missa da manhã ordenou ao coroinha que tocasse os três sinos da torre. Para que os ouvidos fizessem pouco do olfato de cada um.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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