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Contos
01/01/2013 - 12h05
Sans-culotte
Marco Albertim
 

São nove horas. O sol não incide na calçada coberta pela marquise. Antes houvesse luz, calor intenso, posto que à sombra, moscas-varejeiras zunem tontas no cimento áspero do piso. Só uma loja se mantém aberta, com sacos no chão expondo cereais, carne-seca, bacalhaus e peixes defumados e um açúcar que, de tão grosso, derrete-se feito uma gosma viscosa.

Dois empregados, cada um segurando um abano, enxotam os insetos para as lojas de portas fechadas. Eles voam, insistem em voltar. Há os que, atraídos por outra sujeira, pousam nos pés do homem sentado no batente da loja fechada.

O homem está vestido com uma calça listrada, uma camisa de algodão grosso, os fios soltos na bainha, nas mangas, na gola; fora verde o tecido, mas encardira-se com o uso diário, agora emitindo tons escuros de sujeira. As unhas dos pés e das mãos, compridas, abrigando um grude gorduroso, preto. Os cabelos eriçados dando conta de um exu redivivo. Os braços compridos, magros, não têm a força que se atribui a um exu. Danilo Bronca parece-se mais com um sans-culotte; sem o barrete frígio, sem o poder da guilhotina.

Ele não me vê. As regras de segurança são rígidas. Não podemos nos comunicar. Sequer tínhamos conhecimento de que vivíamos na mesma cidade, a calorenta Fortaleza. Meu estômago está cheio ou pelo menos não sente falta de comida. O de Danilo Bronca está vazio... Tenho uma merreca no bolso, o bastante para comprar-lhe um pão com mortadela, mais um copo cheio de café quente; a quentura do café seria um alívio para sua alma.

À noite, tarde da noite, volto para passar em frente à mesma calçada. Se ele não tem onde dormir, por certo dormirá sob a marquise. Danilo Bronca sumira. A luz do poste é mortiça, o que acentua o espectro deixado por seu rumo erradio.

O quarto onde moro é pequeno, mas há espaço para amarrar os punhos de outra rede nos caibros da coberta. Por trás há um açude; dele se desprende um perfume fluvial que suaviza a cinzenta rotina da vila operária. Homens de macacão, mulheres se cobrem num madapolão desbotado, os meninos têm os cambitos mirrados, cor de madeira seca. Misturo-me com todos e ninguém se dá conta de quem sou... Com Danilo Bronca dar-se-ia o mesmo, caso não errasse pelas esquinas ou não secasse feito um defunto, cheirando o miasma da terra bruta.

No domingo seguinte, em reunião, contei aos camaradas da direção que descobri o paradeiro de Danilo Bronca. Emília, tão curtida quanto sua voz no corpo farto, olhou-me sem esconder o sobressalto. Chico não tivera tempo de trocar o macacão por uma roupa de algodão fino. Todos sabíamos de seu ofício de ferramenteiro. Estêvão, operário sapateiro, compunha-se num traje fagueiro, conveniente por certo às demandas de seu casamento com Emília.

O sobressalto de Emília foi seguido pela troca de olhares entre os três. Os três, ora... Os três sabiam que Danilo Bronca evadira-se de Recife, e vivia clandestino em Fortaleza; clandestino nem tanto, posto que conservara o nome da identidade real. A troca de olhares era a confissão de que um segredo partilhado pela direção, tinha, dali em diante, a partilha de um camarada da base.
- Nós sabemos. - adiantou-se Emília - Ele está desempregado, e não temos como lhe arranjar ocupação remunerada. Passa o dia nas ruas, nas praças. Volta à noite para dormir na casa de um operário que não é do partido. E não podemos recebê-lo na casa de algum de nós, porque poria em risco a segurança.
- Como ele se alimenta. - perguntei - Ele está parecendo um zumbi!
- Come à noite na casa do operário.

Semana seguinte, decidiu-se que Danilo Bronca teria que morar comigo. Com muito gosto ouvi a decisão. Talvez Danilo Bronca me desse notícias de Recife.

Encontramo-nos sob a marquise das moscas-varejeiras. Abraçamo-nos. O fartum de seu suor juntou-se ao morim de minha camisa. Uma semana depois, ele estava com as unhas dos pés e das mãos cortadas, o cabelo aparado, um par novo de chinelos, calça e camisa que lhe emprestei.

Sua família, por meio de um camarada, enviou-lhe um pacote contendo calça jeans, duas camisas de seda, um par de sapatos e dois de meias. No meio de tudo, a bíblia, o Velho Testamento. Deitado em sua rede, noites seguidas, ele tentou me convencer que os melhores exemplos de lutas de classes, estão na bíblia.

Conseguiu emprego como vendedor de livros. Na primeira vez que foi chamado para distribuir panfletos na porta de uma fábrica, ele reagiu.
- Não posso. É no mesmo horário do culto na igreja.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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