O sol incidiu sobre o túmulo semiaberto, queimando o que restara do defunto ali posto há quinze dias. Nos dias de semana, nenhum visitante, posto que ralos, deu conta do fedor da carne decomposta. Só os coveiros, já acostumados ao bodum saído de uma fresta ou outra, de uma cova coberta de barro seco, revestido de uma fina camada de cimento; tão fina quanto erodida entre um grão de areia e outro; o cheiro dali escapando, cúmplice à transpiração do morto, quiçá à força do além-túmulo. Um túmulo semiaberto num cemitério com mais de duas mil sepulturas, convenhamos, é como uma gaveta deixada do mesmo modo no recesso de uma família; tanto se lhes dão que dali saiam emanações de cambraias, quanto de miasmas ainda entranhados, só alisados pela lavadura vaga do sabão. Assim, os coveiros sentiram o fartum do defunto que não resistira aos vermes; deixá-lo à devoração exposta, ora... Também não são eles, os coveiros, devorados pelos miasmas da terra que cavam para deitar mortos, onde mortos antepassados sumiram, fundidos no mesmo negrume terroso? Sete, oito, nove horas da manhã. O sol já não era um astro alvissareiro, mas um tição fogoso, tisnando de suor o rosto de romeiros na via principal do cemitério, a que anuncia a capela de cumeeira gótica, cobrindo-se de sopros benzedeiros; era o curtume secando testas e braços de coveiros, pedreiros, cujos fios de cabelos luziam feito o cobre lustroso nas lápides de barões do açúcar; os retratos dos barões, todos na cor sépia, conservavam na moldura uma apagada menção ao néctar da cana-de-açúcar no terraço dos casarões. Nos fundos da capela, a via de trás, juntou-se perfilado, um destacamento de marinheiros. Nos uniformes cambraiados, a estética do vestuário era tão simétrica quanto a precisa liturgia da homenagem aos marujos ali enterrados; melhor dizendo, ajustados ao mármore infenso a vermes. O marinheiro pôs a corneta na boca; feito um clarim, recuperou memórias de vidas, de guerras. Fotógrafos, jornalistas, focas de eventos solenes, registrando datas e o rosto solene de almirantes, e da elegante almiranta com a justeza de sua saia pouco acima dos joelhos; almiranta tão fornida quanto o calendário de efemérides da Marinha. À pungência do clarim, juntou-se um vento carregado de agouros; não fosse o bodum saído do túmulo esquecido pelos coveiros, seria um vento tão somente brioso juntando-se às linhas sem dobras da farda dos marujos. Por certo o alfaiate responsável pelo figurino, fora dispensado da solenidade; do contrário... O toque silencioso, exigente de pausas, era como um descanso para os pulmões do corneteiro; entre uma nota e outra, ele infundiu-se de forças e de orgulho; na inspiração, engoliu o vento vindo dos fundos do cemitério; só podia ser dos fundos... A garganta atropelou a voz dos pulmões; não tossiu, mas não evitou a repulsa à lufada carbúncula, estranha ao roteiro do ritual. Os olhos avermelharam. Juntou-se ao incômodo, a quentura do sol. A almiranta logo associou-se à dor do subordinado. Tinha pela frente o cumprimento do rito. Dispensou o corneteiro do uso do clarim. Leu o discurso, deu entrevistas para defender o direito de a Marinha ter seu próprio cemitério. A solenidade teve fim às 11 horas, uma hora antes do previsto. Dispersados, os marinheiros seguiram para fora do cemitério. No caminho, a almiranta encontrou-se com um funcionário, seu Pereira, 68 anos, trinta como cavador de túmulos. - O senhor não cuida de evitar o mau cheiro de defuntos mal-enterrados? - Que mau cheiro, senhora? - Não sei quem é o defunto. Só sei que ele incomoda mesmo depois de morto. - É só um cheirinho à toa... Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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