O professor Nepomuceno acordou mais cedo. Vestiu-se como todos os anos: calça preta sustida por um cinturão de couro da mesma cor, afivelado num bronze lustroso; camisa verde, mangas compridas, ajustada no interior da calça; nos ombros, o sigma sobre as alças salientes. Fez tudo sob o olhar de aprovação de Aurora Nepomuceno, sua mulher. Antes de sentar-se à mesa para o café, ergueu o braço direito e disse com a voz roufenha - Anauê! - A mulher, que se vestira com um brocado tão luzente quanto a fivela do cinto do marido, não deixou por menos - Eu também estou aqui! - Poderia ter repetido a interjeição, mas traduziu-a do tupi para dar conta de sua energia. Os dois trocaram olhares gêmeos, e antes de pôr a primeira porção de cuscuz amarelo na boca, miraram o rosto germânico de Gustavo Barrozo na moldura do quadro; na frente dos dois, o rosto estirado, liso, olhos de peixe morto sob a boina verde de aba descida. A negra Maria das Dores, há uma vintena de anos servindo o casal, tinha no juízo e na palma da mão, os nichos da casa com cinco quartos. Com intimidade bastante para recolher do cabide atrás da porta do quarto principal, a cueca e a calcinha usados, lavando-os no esfregão de suas mãos gordas e calosas. Quando os dois supuseram que ela não tinha mais comida para trazer da cozinha, a negra ouviu de Aurora Nepomuceno: - Maria das Dores! Traga xícara, prato e talheres para você. Sente-se e coma conosco! Não era uma ordem desenxabida, era um ritual resgatado de uma velha cartilha. O professor Nepomuceno, feito um escudeiro que sabe manter a simetria da indumentária, deu a sequência: - O problema não é étnico, é ético - disse e olhou outra vez nos olhos de Gustavo Barrozo. Maria das Dores quis virar o pescoço para dar conta de algum arremedo de reverência ao ícone na parede; em vez disto, torceu para um lado o grosso tronco, pondo nos olhos a tenção de ser também, ela, adoradora de uma divindade desconhecida de sua origem banta. Conservava ainda meia dúzia de dentes, o que não evitava que as bochechas, os lábios, balançassem moles na lenta mastigação. Aurora Nepomuceno prometera-lhe dentista. Havia um ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos. A igreja há muito se mantinha fechada, abrigo de morcegos, corujas e pombos. O consultório dentário, numa esquina paralela, era frequentado por moças impúberes junto a mães zelosas. Aurora Nepomuceno, tendo em conta a decoração da antessala do dentista, aconselhara-a tratar os dentes com o dentista do Serviço Social do Comércio. Tratou-se; em vez de coroas de porcelana nos dentes roídos, encheu-se de resinas; na mastigação de ossos diversos, perdeu-as uma por uma. O dentista, pouco atento à saúde bucal dos pacientes, deixou-se minguar nas recomendações. Por ora, Maria das Dores deixa-se levar pela cantoria num terreiro de candomblé, à noite, sempre que Aurora Nepomuceno a libera depois que a louça usada no jantar, é lavada e enxuta nas prateleiras do armário da cozinha. Tem por último a apoio do professor Nepomuceno; o professor não inquire sobre os detalhes do culto, admite-o como um modo de resistir ao modernismo dos centros cosmopolitas. Na manhã do 7 de setembro, sabendo o costume do casal, cozinhara um munguzá grosso, de caroços graúdos. Agora mastiga-os como pode, sem sacrifícios, posto que a comida é de uso nas cerimônias de xangô. Foi a última a se levantar. O professor Nepomuceno, depois de absorver com o guardanapo restos de comida nos beiços, nos fios do bigode basto, foi para o quarto onde mantinha uma estação de radioamador. Aurora Nepomuceno foi para o terraço. As pestanas pesaram por volta das 10 horas, e foi acordada pela visita de uma matrona tão gorda quanto ela. O professor Nepomuceno falou com correligionários de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Identificando-se pelo prefixo, logo era reconhecido. Espasmou-se de tanto ouvir a saudação dos camisas-verdes. De um gaúcho de Alegrete, obteve a promessa de receber uma cópia dos estatutos do partido integralista. - Tem o apoio de quem na cidade? - quis saber o gaúcho. - Do prefeito Epaminondas, do tenente Camilo, do cabo Chaves, da Guarda Municipal, do delegado Acioli, e do padre Fernando Bentes, da paróquia. Orgulhou-se, o professor, de ter juntado um fornido núcleo. O exemplo seria do conhecimento de todos, em todas as capitais, pelo radioamador. Cumprido o dever cada um no seu ofício, hora do almoço. Maria das Dores cozinhara sarapatel. Cozinha, sala e corredor encheram-se de um bolor africano. No fim da tarde, o desfile de escolares em traje oficial esticou-se na rua em frente à casa do professor Nepomuceno. Ele hasteara a bandeira nacional no mastro do lado de fora do terraço. Ouvindo o toque de clarins, perfilaram-se o prefeito Epaminondas, o tenente Camilo, o cabo Chaves, o delegado Acioli e o padre Fernando Bentes. A negra Maria das Dores, em pé, atrás, esgueirando-se para ver o desfile. A casa do professor, a uma distância de vinte metros da esquina. Dali, o negro Salatiel, assíduo xangozeiro no mesmo terreiro de Maria das Dores, gritou: - Galinha-verde! Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
|