Tão somente uma vez Cipriano Vaz Permanente fora inexato com a esposa; quando não admitira a suspeita de que tinha uma amante. Ter uma amante numa cidade de rotina pachorrenta, é tão desusado quanto ouvir o pio da coruja sob a luz parda do sol que começa. Ora, a coruja jamais daria conta do caminhar furtivo do coletor, rumo ao coito fora das obrigações conjugais; porque, zeloso da cadeira à frente de um birô no sossego de quatro paredes de uma coletoria de província, adquirira o consentimento de sair durante o turno da manhã ou da tarde. Não o seguiriam, porquanto o tinham em boa conta no apego ao ofício; por mais de vinte anos. No mais, couraçara-se no solene costume de ir à missa aos domingos; com a mulher rodeando o pulso no braço dele, e duas filhas adolescentes, alunas obedientes às regras de um colégio de freiras. A menção a seu nome inteiro, faça-se justiça, é para avivar-lhe o modo imudável. Há muito não se tem notícia de Permanente. Não seria de bom-tom judiar-lhe a memória. O certo é que, rezando junto a outros misseiros, cria-se protegido da censura malsã por certo incrustada nas orações de velhas carolas. A suspeita da esposa nasceu e cresceu também no silêncio das expiações no confessionário. Ele, tão empertigado quanto a cruz na torre da matriz, nunca se ajoelhava para dar conta de pecadilhos. Já a mulher, ao menor indício de que o juízo se cobrira de culpas depois de um sonho com enredo de invejas, espreitava o calendário como numa corrida para evitar um castigo pior. A amante, inda que só teúda, visto ter uma algibeira presa à cintura, sob a bainha da blusa, tinha no padre o alívio da culpa que punha na viuvez. Fez-se notar para a esposa de Permanente, depois que pusera os remediados olhos no amante; seguidas vezes, ao se levantar do confessionário. Vincos de estranheza curtiram a testa de Juviniana Permanente; vincos verticais, apontados para seu nariz comprido. Humm... Um muxoxo à toa, fez de conta o coletor; para, é preciso dizer, não ser forçado pela mulher a palavrear as inconfessas culpas nas frinchas do confessionário. - Tem cabimento!? - disse Juviniana no almoço. - Tem cabimento o quê? - A viúva do finado Pragana põe os olhos em você, toda vez que sai do confessionário. As filhas, reféns do silêncio conventual na sala de aula, convieram nada dizer. - E é? - Não se faça de sonso... As filhas não evitaram o susto. As duas já tinham vincos verticais na testa. A noite mostrou-se com um silêncio prenhe de interrogações na sala onde costumavam sentar, depois das refeições. Permanente cuidou de pressionar o botão da televisão, usurpando o hábito da esposa. - Vocês duas não têm que estudar? - lembrou. - Sim. - A resposta das duas veio ao mesmo tempo. - Permanente - emendou Juviniana -, se domingo a viúva do finado Pragana olhar para você de novo, vou tirar a dúvida com ela. - Vai chamar atenção. - Na calçada da igreja, no final da missa. - Mesmo assim. Você vai ter que voltar para o confessionário. E o padre já estará na sacristia. - E você, por que não se confessa? - Sou o coletor da cidade. Todo mundo me conhece. O que Permanente estará dizendo no ouvido do padre? Vão comentar. - Ora essa... Sou a mulher do coletor, me confesso e ninguém fala mal de mim. - Você passa o dia na intimidade da casa. Não é como eu. - Intimidade! A viúva do finado Pragana olha pra você como se tivesse intimidades com você. - Onde já se viu! O entrevero não os impediu do coito caseiro, com gemidos contidos. Só depois é que ela segurou a enfiada do rosário, percorrendo conta por conta, para não ter que dar muitas explicações no confessionário. No balbucio miúdo da reza, Permanente viu a ameaça de ser mirado por velhas devotas na porta da igreja. Juviniana nada sonhou. O marido teve um pesadelo. Na véspera da missa ele foi à casa da viúva do finado Pragana. - Pare de olhar para mim na igreja. Minha mulher já notou! - Tenho que confessar ao padre todo domingo. Porque eu juro que não vou olhar pra você, e não cumpro a jura. A viúva, depois de entregar-se com gemidos de reza, preparou-lhe uma infusão de ervas, vinagre, alho, sal e pimenta. Cozeu-a e despejou numa bisnaga de plástico com um furo no bico. Permanente deixou-se injetar pelo reto. O efeito do clister durou dois dias, mais que suficiente para ele não ir à missa. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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