25/11/2024  10h26
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Contos
11/10/2012 - 15h06
Compra de votos
Marco Albertim
 

Na ponte, vindos da usina, os homens usavam calças cinzentas e camisas da mesma cor; o contraste era pouco com os rostos tisnados do sol, tisnados e transparentes sob a camada do viscoso suor. Nenhum tinha guarda-chuva sobreposto ao ombro, inda que no céu uma mancha cor de chumbo obstasse a insistência calorenta do sol. Todos, sem exceção, com chapéu na cabeça; uns de feltro já esgarçado, e ainda dando conta de uma pecúnia na algibeira, num vivo contraste, mesmo sem embate, com o bolso vazio dos que tinham na cabeça a palha amarelecida do chapéu também usado no corte da cana. As botas com solado de pneus, tinha-se a impressão, iriam esmagar os pés descalços dos mais pobres; os pés nus, ora, acorriam para as urnas de votação.

As mulheres protegiam o corpo da cambraia fina, florada, com uma combinação não raro do mesmo comprimento do vestido; as com sutiã tinham-no com um corpete basto, tão largo quanto suas cinturas. Traziam os filhos de calça curta; não guiando-os segurando suas mãos; os pirralhos, feito fiéis vira-latas, não despregavam a mão da cambraia luzente sob o sol.

Vinham dos arruados da usina, a pé, percorrendo légua e meia de uma estrada de barro seco, carregada de seixos. A estrada, útil para o transporte da colheita de cana, os camponeses a usavam para o acesso a Goiana, à feira onde compravam hortaliças. Os que tinham no quintal uma eira ainda não socada, plantavam inhame e vendiam-no na feira. Um filho ou outro ainda não apinhado para o corte no eito, percorria-a ida e volta, depois da sonolenta instrução da professora sobre religião, sobre o abc sem monta para o administrador da usina.

Descendo a ponte, a rua fora coberta de paralelepípedos. Como num vão, eles a desceram para em seguida subir pela concavidade alta. Lá de cima, o ajuntamento na frente do grupo escolar avistou-os com espreita nos olhos inquiridores. Os rostos queimados, olhos estreitos mal dando conta do propósito de cada um, davam-lhes a impressão de testemunhar a invasão de guerrilheiros sem armas, com planos de ocupação da cidade. Os moradores, no entanto, distraíram-se com a marcha ruidosa escapando da ponte que, durante todo o ano, dava passagem apenas a uma vintena de moradores de casas espremidas entre o rio e o canavial.

Não demorou e, a mancha cor de chumbo à frente do sol, toldou-o de vez. Uma chuva grossa ribombou no calçamento. Já no alto da rua, restaram-lhes duas saídas para não se molharem: o grupo escolar ou o bar do outro lado, onde a cachaça era vendida de mistura a caldo de cana. O cheiro da cana no moinho do bar atraiu-os. Os meninos, de alpercatas nos pés miúdos, correram sem soltar a cambraia das mulheres; sem susto, posto que o sol diário já lhes tivesse crestado a pele.

Não tinham pressa para votar. O Título de Eleitor de cada um ficara sob a guarda da gerência da usina; e a gerência da usina, ora, não iria descumprir a lei.

Na semana anterior, o documento fora pedido junto com a Carteira Profissional de Trabalho. Não aos trabalhadores temporários, porque apenas apunham a impressão digital no recibo de pagamento; mas aos fichados, assim chamados porque de sua Carteira constava a assinatura do contratador. Fora-lhes dito que o Título de Eleitor seria devolvido na cidade, na hora de votar.

No dia anterior à entrega dos Títulos, balanceiros e ajudantes, operários da esplanada da usina, repararam o trânsito de veículos do tipo Rural-Willys, dando conta de homens bem-vestidos entrando no escritório da gerência; entravam circunspectos, saíam sorridentes. Até um fardado com divisas de tenente sobre o cáqui da Polícia Militar, orgulhou-se da obra com centenas de operários. Dois outros, com a solenidade de promotor de Justiça um, de juiz de Direito outro, não pouparam apalpadelas no bolso interior do paletó, na altura do peito. Dentro, um envelope com os merecidos honorários.

No bar do caldo de cana, não se ouvia mais o ribombo da chuva na calçada, no calçamento; só o ruído de locomotiva da máquina moendo canas raspadas. Os homens que tinham moedas na algibeira, comeram pão-doce com a bebida. A maioria conteve a fome já disciplinada na dieta diária.

Uma Rural estacionou na frente. O ocupante ao lado do motorista, vestido de cáqui azul de cima a baixo, chapéu de couro luzidio na cabeça, desceu para dizer que todos deviam subir a rua, dobrar a primeira à esquerda. No primeiro sobrado com três portas abertas, deviam entrar. Era a Cooperativa dos Plantadores de Cana.
- Lá tem comida para todo mundo. Comida e o Título...


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CONTOS"Índice das publicações sobre "CONTOS"
20/12/2022 - 06h19 Aquelas palavras escritas
20/10/2022 - 06h07 Perfil
30/06/2022 - 06h40 Ai eu choro
13/06/2022 - 06h32 Páginas de ontem
31/05/2022 - 06h38 É o bicho!
24/05/2022 - 06h15 Tocaia
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.