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Contos
30/09/2012 - 17h00
A urna dos votos
Marco Albertim
 

Para regalo do professor Jânio Basquental, os policiais fizeram pouco caso de vê-lo arrastando a urna por uma corda atada nas laterais. Amarrara-a com a mesma destreza com que fazia uso da vareta nas salas de aula, reiterando os conceitos de Direito Civil expostos no quadro-negro. Regalou-se ainda mais quando a perplexidade juntou-se à indiferença no rosto dos dois policiais fardados; não era para menos, visto que sua coragem foi comemorada com estouro de rojões; ali mesmo, na esquina da igreja, por dois estudantes, civilistas estrepitosos.

Os rojões anunciaram a súbita presença de Jânio Basquental, sem o paletó de linho cinza, de uso costumeiro; mas com a calça da mesma cor e a camisa branca, mangas compridas, já conhecida de seus alunos. Ele surgiu vindo do grupo escolar, onde presidira uma das secções de votação. Ouvira rumores de que a urna, encerrada a votação, seria sequestrada com todas as cédulas; por capangas da usina, cujo proprietário, João Amâncio dos Santos, não se conformara com a pregação de Jânio Basquental em favor de Benvindo Magalhães. Benvindo, diga-se, era advogado do sindicato rural, com assento e voz nas Ligas Camponesas. A urna fora fechada com uma chave na fechadura na lateral da frente. Jânio Basquental, ante o assombro dos mesários, pôs a chave no bolso da algibeira. Não se assustem - explicou. O direito à rebeldia é legítimo, conforme a Carta das Nações Unidas. Ilegal é esconder a vontade do povo. Ninguém vai sequestrar a urna; ela vai ficar na minha casa. Amanhã cedo eu levo para o Fórum.

E para que não pusessem em dúvida sua convicção civilista, fez constar da ata a decisão de proteger a urna em sua própria casa. Pediu ajuda aos mesários, mas ninguém quis se arriscar. Podia, ele, pagar o frete de um táxi. Mas toda a frota na Praça da Bomba, fora alugada por João Amâncio dos Santos, para o transporte de seus eleitores.

Uma rua com apenas um quarteirão, separava o grupo escolar da rua principal de Goiana. Não pôde arrastar a urna sobre os paralelepípedos, tampouco numa das calçadas de um lado e de outro; as pedras de cerâmica, gastas, ondulavam côncavas; outras tinham sumido sob a pressão diária de pisadas depois de vinte anos de instaladas. Jânio Basquental teve a ajuda dos dois estudantes. Na esquina, fez questão de que não o acompanhassem para evitar que também eles não sofressem abusos dos capangas de João Amâncio dos Santos. O brio civilista dos dois, no entanto, fez sair da sacola com alças que um deles tinha sob o ombro, rojões de espoucar tão ruidoso que fez retinir os três sinos na torre da Igreja Matriz; sons agudos misturando-se a contraltos. Também aí deu-se bem Jânio Basquental, visto que a gravidade dos sinos imiscuiu-se sem desacordo com a cor pardacenta do fim da tarde.

Depois de andar o primeiro quarteirão da rua Direita, parou para descansar na esquina do Beco do Pavão; não quis sentar, inda que pudesse num dos batentes de portas fechadas, da companhia de luz. Mas sentar ali, na frente de eleitores que o julgavam tão marcial quanto suas ideias, daria a impressão de trégua nas mesmas ideias.

Acudiu-o uma circunstância feliz. Estava suado, via-se pela camisa que de sua barba escorriam pingos sobejos sobre o pano transparente. Ele lambia os beiços, mordendo-os, conferindo densidade ao esforço de resistir aos urdumes de João Amâncio dos Santos. Fechou e abriu os olhos, deparou-se com um caneco de alumínio, suado de gelo, com água fresca dentro. Era Ivete Vargas, tão gorda quanto a neta de Getúlio Vargas.
- Beba - a mulher de rosto redondo, olhos estreitos, usando um vestido basto para conter o corpo cheio; escuro de cima a baixo, com florzinhas amarelas.

Do outro lado da rua, um Ford com a capota em forma de barata, estacionara. Eram os homens de João Amâncio dos Santos. Os dois polícias, de indiferentes, perplexos, tornaram-se expectantes. De um lado, Jânio Basquental decidido; o suor na testa, a barba desgrenhada dando vigor a seu cansaço; de outro, os capangas do usineiro, quatro da milícia particular da usina; usando chapéu de feltro e, por certo, um parabélum em cada cintura.

Noitinha, a rua se deixara iluminar pela luz mortiça em cada um dos postes.

Os homens saíram do Ford, atravessaram a rua em direção a Jânio Basquental. Também Ivete Vargas percebeu-lhes o intuito malsão; correu para o estúdio da Rádio Tupã, com bocas de microfones espalhadas pelas extremidades de Goiana, nos limites do canavial. Como se estivesse lendo um telegrama urgente, o locutor deu conta de que uma agressão estava para ser cometida no professor Jânio Basquental.

Ivete Vargas voltou a tempo de se pôr entre o professor e os capangas.
- Por aqui vocês não passam!

Ivete seguiu Jânio Basquental até a sua residência. A urna foi entregue ao Fórum na manhã seguinte.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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