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Contos
23/09/2012 - 10h00
A caça do voto
Marco Albertim
 

Calça e camisa brancas e, por certo, a cueca da mesma cor; samba-canção tão comprida quanto suas coxas. O talhe era visto entre os fios da calça. O figurino tornou-se tão comum que se confundia com o oitão alto da igreja em frente à casa de Chuca; branco com duas janelas com parapeito e moldura em pedra de cantaria. O cabelo, cortado à escovinha, repartia-o ao meio. Inda que o sopro do vento fizesse voar as folhas dos castanheiros nos dois canteiros em frente à igreja, um fio sequer sobressaia dos demais; se pressentisse a ameaça de borrasca, era o primeiro a pôr a mão aberta sobre a cabeça. Que os olhos se enchessem de ciscos, miudezas invisíveis, mas nunca se lhe descompusessem a silhueta fina.

No dia da eleição, vestiu-se como de costume e pôs um traje a mais sobre as costas, o paletó de brim branco. A esposa também saiu para votar, mas seguiu no rumo oposto ao do marido, num grupo escolar na rua atrás de sua casa, com vizinhança bastante para uma prosa miúda sobre o que cozinhar no feriado. Tinha o dia inteiro, ele, para beneficiar o candidato escolhido. Parou na esquina da rua Direita, a mesma da Prefeitura; lá podia mostrar a polidez da vestidura, pôr-se de acordo com as curvas barrocas do prédio. Ainda mais porque, os eleitores que votavam nas duas únicas seções da Prefeitura, juntavam-se na calçada antes do voto na urna; grupos de oito, dez cidadãos disputando opinião sobre um candidato ou outro.

Chuca juntou-se ao primeiro grupo que encontrou. Os eleitores sentaram-se num banco de pedra, na pracinha ao lado da Prefeitura. No assento, quatro se acomodaram enquanto outros seis, em pé, não davam sinais de impaciência ou cansaço. Nove horas, a brisa assoviando nos castanheiros da rua, dava conta de uma trilha sonora pastoril.
- Chuca, você vai votar em quem para prefeito? - quis saber Belisário, o farmacêutico. Carece dizer que Belisário fora vítima de malária, curou-se com quinino e, desde então, há quatro anos, não interrompera a ingestão da bebida. Sem controlar os gases, misturava às palavras arrotos miúdos e ruidosos.
- Ainda não escolhi...
- Como não?! A essa altura!

Belisário notou que sua surpresa era partilhada pelo ajuntamento; conveio, pois, que um arroto seria mais brioso que a indecisão de Chuca. Chuca foi o único a sorver o sal amargoso expelido por Belisário; não prendeu as narinas nem fechou a boca, mas a simetria do bigode deixou-se esticar porque ele olhou para o paletó, para a camisa, sacudiu-os de cima a baixo para se livrar das toxinas livres do estômago do farmacêutico.

Belisário riu, os outros riram. Chuca pôs as mãos para trás, uma segurando a outra. Salvou-o a presença súbita de sua esposa. Já votara, Dejanira. Ao lado do marido, o fustão claro do vestido deu conta de que os dois tinham juntado a alma a ponto de se diluir no cenário cinzento, quase sem cor, das casas de Goiana.
- Já votou? - agora ela inquirindo o marido.

Antes de responder, Chuca mirou o rosto de Belisário.
- Ele ainda não tem candidato! - interveio o farmacêutico.

Uma Rural Willys estacionou em frente. Em Goiana, era a única azul e branca. Desceu pela porta da frente o prefeito Agamenon Brotas. O motorista permaneceu no carro.
- Sei que tenho o apoio de vocês - disse o velho. Tinha sempre um cigarro no canto da boca; esquecia-se de puxar a fumaça e as cinzas caíam na aba do paletó cinza-claro. - Mas ainda não sei em quem Chuca vai votar. - Ao dizer isso, pôs a mão sobre o ombro de Chuca.
- Ele ainda não tem candidato! - repetiu o farmacêutico. Deixou escapar outro arroto, mas o cheiro do cigarro de Agamenon Brotas adensou o ajuntamento.

A hora avançou sem que obtivessem de Chuca uma escolha para votar. Meio-dia. Agamenon Brotas convidou Chuca para almoçar em sua casa. Dejanira não quis seguir o marido. Dissera que já votara. Agamenon Brotas não quis saber da escolha de Dejanira, por certo para não se surpreender com uma opção contrária a seu nome.

Os dois, Chuca e Brotas, conversaram até as 6 horas. Havia tempo para o voto.

Em frente à casa de Chuca, Djanira atendeu à campainha. Era Osvaldo Lindoso, candidato da oposição com o apoio dos dois usineiros de Goiana. Antes de falar com Osvaldo Lindoso, ela guardou o título de eleitor; na mesma gaveta da escrivaninha do quarto, viu o título de eleitor do marido. Deus do céu!
- Ele ainda não votou e foi almoçar na casa de seu Brotas. O título dele está aqui...
- Me dê que eu entrego a ele.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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