O teto abobadado da capela pareceu cúmplice à ordem de banir das ruas qualquer trama subversiva. O rosto curvo do anjo barroco, com olhos inocentes dando conta de nichos escondidos, também vazou os olhos expectantes de Urbino. A velha varrendo a cantaria do piso, tinha o rosto da mesma cor das pedras sob seus pés; rosto e pedras amarelos, doentios feito chagas rotineiras, proibidas de cicatrizar-se. A velha se convencera, por certo, de que sua paciente varredura há muito fora ungida da prece muda nas paredes, na abóbada com anjos inertes, na única imagem do Cristo com olhos submissos no altar de pouca altura. As sepulturas em volta da capela, limpas, na sombra dos fícus de tronco grosso, davam razão ao juízo da velha, de que também era responsável pelo sono dos defuntos. Ela olhou para o rosto de Urbino, urdiu certa candura na mansidão dos olhos dele. - O rapaz tem algum problema... Reze, meu filho, reze muito que você encontra a solução. Ele assentiu com os olhos mortos. Convinha mostrar-se como um morto, visto que morrer era indício de aversão a bulícios inapropriados. Levantou-se do banco de madeira, devagar, no ritmo das cerdas da vassoura no chão. Saiu pela porta lateral da capela, e não teve como evitar o acesso principal do cemitério, rumo ao portão, mesmo correndo o risco de ser observado pelos policiais da viatura ao lado do portão de ferro. Não olhou para os homens fardados, não convinha; deixou os ombros caírem, como se sua provável prisão não fosse prazerosa para os homens afanosos de reféns. Saíra da capela ao meio-dia. Rezar àquela hora, numa segunda-feira, estranho seria até para a velha com o rosto de cera. Tinha na mão direita uma caixa de fósforos, no modo como fora instruído. Mas ninguém como ele, com um par de tênis estropiado nos pés, a camisa de algodão desbotado, inda que inteira, surgira para, com uma troca de palavras já combinadas, dar-lhe abrigo na casa de alguém do Partido. Ninguém... Ora bolas! Encafuar-se no quarto da pensão onde se hospedara na noite anterior, nem urdir, mesmo que tivesse deixado a tiracolo com roupas e, no fundo, um maço de papéis com informes de avaliação que o Comitê Regional fizera sobre as últimas prisões. Ali mesmo, perto do Cemitério do Mororó, comeu dois pastéis com um caldo de cana. Tinha dinheiro para uma refeição completa, mas teria que passar mais uma semana na pensão, pagando as diárias. Resolveu poupar até a segunda-feira seguinte, quando voltaria à capela para obter o contato; com a caixa de fósforos e três palavras na ponta da língua - um pronome, um substantivo e um verbo. Passou a tarde sentado num banco de praça, sob uma palmeira, ouvindo a conversa de velhos aposentados. Na Estação Ferroviária, já noitinha, rumas de operários saíam dos vagões. Não vestiam macacão, mas cada rosto exibia o afã de logo chegar em casa, sorver o café quente no bule de ágata enfeitado com desenhos de flores. Urbino quis juntar-se a eles, sentir-se formiga no meio do formigueiro, não um inseto refugado num banco de praça. Levantou-se para tomar café. Pouca gente no boteco da Praça do Ferreira. Quem tem família, toma café em casa - pensou. Na pensão, a proprietária bateu na porta do quarto onde ele se hospedara. - É para preencher a ficha de hóspede. Eu esqueci de lhe pedir ontem. Ele preencheu na frente da mulher, não sem controlar o tremor da mão segurando a caneta. - O que pretende fazer em Fortaleza? - Trabalhar. - Tenho um amigo que é coronel da polícia. Quer que eu fale com ele para conseguir emprego pra você? - Não precisa. Amanhã mesmo eu vou numa fábrica que vi com uma placa anunciando vagas. - Parece que você não gosta de polícia. - Sou novo na cidade. Não quero pedir favor a estranho. Não dormiu logo, Urbino. A dona da pensão saíra do banheiro, lavara-se, perfumara o corpo roliço de 35 anos. Uma porta fechada separava seu quarto do da mulher; pela greta fina entre os dois lados da porta, ele viu que as franjas dos cabelos da proprietária tinham a mesma cor do biombo vaginal. Doce clandestinidade... Dia seguinte mudou-se para outra pensão. A semana arrastou-se, mesmo com a correria dos operários sendo despejados pelos vagões na Estação Ferroviária. Voltou à capela. Não demorou cinco minutos, foi abordado por um rapaz de sua idade, loiro de cabelos desgrenhados. - Que horas são? - inquiriu-o o recém-chegado. Bolas! Ele disse a frase que deveria ser dita por mim...! Com a troca de senha, Urbino julgou que se tratava de um polícia infiltrado. Não quis dar conta da suspeita. - Espere aqui. Outra pessoa virá falar com você. Saiu do cemitério, foi à pensão, pegou a bagagem e subiu no primeiro vagão rumo a Aquiraz, onde a rodovia abre caminho para fora do estado. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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