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Contos
10/08/2012 - 15h02
O crime do sacristão
Marco Albertim
 

Deu-se que os sinos da igreja tocaram simultâneos. Àquela hora, oito da manhã, o resíduo do vento, na madrugada, conservava a frigidez morna em toda a calçada, principalmente nos batentes de pedra de cantaria, nas quatro portas de madeira entalhada. O lugar, um vácuo de onde se distinguia todo o comprimento da rua Direita, servia de abrigo a velhos aposentados; súbito sem ofício, logo se tornavam destros cronistas de costumes. Dali, como num eirado, tinham o controle do entra e sai da Prefeitura, da Câmara de Vereadores, da Delegacia de Polícia e do ralo curso das gentes que, de balaio com alça, iam à feira à cata de hortaliças com preços menores depois das primeiras horas do dia. Também meia dúzia de moleques fazia uso do batente de cantaria, o da porta do corredor de acesso à sacristia; só meia-porta mantinha-se aberta; a outra metade servia de encosto aos cronistas.

Biu abrira as portas uma hora antes, atento às beatas no costume de rezas assim que se davam conta de que, sobreviventes de mais uma noite, tinham que prestar contas ao santo; abrira e voltara para casa, na rua do lado direito da matriz; percorrera a calçada de casas conjugadas, atravessara outra rua e, já em sua cozinha, fruíra o primeiro repasto. A bimbalhada içou-o de um salto da espreguiçadeira na sala da frente, olhando a desolação da rua pela porta aberta. O sopro vindo da mesma altura da torre da igreja, gelou-o, em que pese a quentura do café ainda arder-lhe a garganta, o tórax. Teve tempo só de fechar a porta sem o uso da chave.

Na calçada, a meio caminho da esquina da matriz, uma devota assuntara sobre os propósitos incertos do sacristão, no toque dos sinos. Abriu a porta, desceu o primeiro degrau antes de pôr o pé do lado de fora. Deparou com os olhos afogueados de Biu; não distinguiu sustos, mas um temor bem-aventurado de quem se beatificara por vinte e cinco anos no repuxo das cordas dos sinos.
- Tem novena hoje, Biu...?
- Tem não! Deve ter sido algum moleque que badalou se aproveitando da minha ausência.

A velha benzeu-se, benzeu-se para não se deixar prurir pela zombaria nos repuxos bastardos das cordas dos sinos. Ele seguiu nos mesmos passos ligeiros. Ela mirou-o, mirou-os ajuizando-os na marcha pelo restabelecimento da liturgia do silêncio.

Na larga calçada da matriz, sem que afrouxemos os passos do sacristão, seu físico, já na infância parecendo um tísico, mas carregando uma asma brônquica com que soubera conviver abstendo-se do álcool e do tabaco, pareceu assomar-se de altura igual aos portais da igreja; pelo menos ao de uso dos cronistas, que viram traços de Golias no rosto magro, miúdo de Biu. Nunca suara, ele, no trajeto de casa para a sacristia; agora, tinha bolhas nas pálpebras, na testa, e um desusado rubor na face encovada.

Não quis dirigir a pergunta a todos, conhecendo a fertilidade da imaginação de cada um. Olhou para Zé do Carmo, o santeiro; santeiro com imaginação para pôr asas de anjo nas estatuetas de cangaceiros de punhal e rifle nas costas, mas santeiro, ora...
- Algum moleque entrou na igreja?
- Não - o santeiro respondeu sem espanto e emendou:
- Pois todos nós pensamos que fosse você anunciando missa.

Entrou na igreja, o sacristão. Cruzou o salão em frente ao altar e fez a genuflexão. No lado oposto, voltou para a porta da frente, a única mantida fechada; subiu pelos degraus de madeira e viu no pavimento superior, as duas cordas, cada uma com um talo de madeira amarrado nas pontas, da largura de uma mão, ainda balançando. Intrigado, subiu à torre nutrindo impulsos de repuxar a orelha de um moleque escondido. Não encontrou vivalma e sorveu o cheiro do zinabre dentro e fora dos sinos.

Carece dizer que, com quarenta anos, só uma vez Biu fruíra as intimidades de uma mulher; há dois anos; de então para cá, e mesmo antes, contentava-se no onanismo solitário, infértil. Na peleja do gozo, e no estertor, confessara à parelha que seu ouvido se enchia de sons de chocalhos, iguais aos dos sinos. Depois, sentiu remorsos e mortificou-se em ave-marias. A reza mortificou-o ainda mais, por ter como objeto uma mulher.

Na semana seguinte ao mistério dos badalos, numa segunda-feira, ouviram-se os sons, com Biu crendo-se repimpado na espreguiçadeira. Saiu de casa sem fechar a porta. Deparou com dona Arminda, a devota. A velha nada perguntou, só inquiriu-o com os olhos. Se tivesse o palpite, o sacristão, de esticar o pescoço e olhar para o corredor da casa, veria que o portão dos fundos fora aberto; não de todo, mas o bastante para entrever que alguém saíra pela estreita passagem entre muros paralelos do casario da frente e de trás. A estreita passagem dava acesso ao quintal nos fundos da igreja; a porta ali só era fechada à noite.

Sob as cordas balançando, o sacristão viu Cenira, criada da velha Arminda; usando o mesmo vestido branco de quando se entregara a Biu.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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