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Contos
28/07/2012 - 15h01
Dois barbeiros
Marco Albertim
 

Certo barbeiro de nome Miguel resolveu romper a sociedade com outro do mesmo ofício; depois de vinte anos juntos, dividindo o aluguel da sala, bem como as despesas com água e luz.

O costume de trabalhar em pé, deixara nos dois o dorso empertigado até a altura dos ombros, mas o pescoço curvado, a cabeça para trás, como para não ceder à curva. Convém mencionar o nome do sócio - Toinho -, por ter a voz tão mansa quanto os movimentos das mãos, dos braços e do andar calculado. O consórcio prosperara numa casa com duas portas na frente, dois quartos atrás, uma cozinha e um quintal com um pombal. Quase nenhum móvel, porquanto num quarto haver apenas a cama de Toinho, uma mala com suas roupas; e na cozinha um fogão branco, de quatro bocas em frente de uma mesa com duas cadeiras. Tudo ali recendia a abandono, em que pese a limpeza no chão, nas paredes; as paredes, diga-se, sem quadros ou retratos, mudas, frias. Toinho, com sessenta e cinco anos, olhando para a cal aquosa, ajuizando-se só no mundo, sem resistir à fatal incrustação do próprio corpo na alvenaria. A rua, aliás Beco da Luz, por no passado ter dado endereço à estação de energia. A casa de força explodiu. A rua conservou o nome.

Miguel, nem tão incerto quanto mencionado como certo barbeiro, instalou a poltrona, o espelho na frente, armário com bandeja de mármore, uma única navalha, tesouras, pentes e a cumbuca sem ou com espuma para amaciar a barbeação, na sala da frente de sua casa. Não por conveniência dos gastos, mas para purgar-se da curva no pescoço fino; não o reporia na posição de quando ainda moço, aceitara o convite de Toinho para firmar a sociedade; mas ponderou que, sem mirar o pescoço do sócio, o juízo de si próprio tornar-se-ia menos traumático. Já sexagenário, morava com a mãe, uma velha com noventa anos. A velha andando da cozinha para a sala, apoiando o corpo lento com uma das mãos na parede, sem ajuda da cozinheira madura, inda que com menos idade. Sua única distração era sentar-se numa poltrona de madeira com travesseiro no assento; sob o umbral do corredor, sem dizer uma palavra, assuntando nos trejeitos do filho no corte dos cabelos.

Junho é mês de frio; chove; a água caindo no fogaréu luminoso das fogueiras de São João, dá mais fulgor às chamas; as labaredas chispando espalham um ruído de festa. Ninguém se queixa. Falar mal do santo é mais que blasfêmia, é como expulsar alguém de sua própria casa, em dia de aniversário. Numa noite da novena na igreja do Carmo, a velha fez tenção de se ajoelhar para rezar, de frente para a santa. Miguel se opôs prevendo chuva, apesar de nenhuma nuvem se sobrepor às estrelas. Depois, conveio que a contrariedade resultaria em prejuízo para a mãe, mais que a chuva súbita nas fogueiras no pátio da igreja. A velha Creolina - assim fora batizada pelos pais, crentes na força terapêutica do nome - quis receber a hóstia. Ajoelhou-se no confessionário com a ajuda da cozinheira. Confessou pecadilhos de juventude, para certificar-se de que São Pedro seria transigente a seus rogos de beatitude.

Na volta para casa, o céu cobriu-se de nuvens. A chuva não toldou o ânimo da noite. Creolina, molhada, trocou-se, enxugou os cabelos ralos com a toalha trazida do banheiro pela cozinheira. No dia seguinte, ela sentiu cansaço no peito. O médico, junto à cama da enferma, diagnosticou angina. Só teve uma semana de vida, dali em diante. Ao enterro compareceram Toinho, a cozinheira e Miguel.

Um ano depois, Miguel viu-se sem a cozinheira. A mulher atendera aos rogos da filha mais velha, casada com um pescador, morando numa casa cujo massapê nas paredes fora trocado por alvenaria; e foi morar com eles na beira do rio Goiana.

Miguel, lembrando-se da doença que pusera fim a sua mãe, foi à missa do novenário. Confessar-se seria um meio de zelar pela memória de Creolina. Não soube o que dizer ao padre; ainda assim, o pároco o sentenciou a duas ave-marias e dois padres-nossos. Na volta para casa, cobriu-se de uma chuva fina, fria. Sentiu cansaço três ou quatro dias depois. O médico diagnosticou angina, embora considerando-o resistente.

Vendeu a casa, depositou o dinheiro no banco e recebe aposentadoria por idade e tempo de contribuição. Mora no Abrigo da Misericórdia, dividindo o quarto com outro morador da mesma idade.

Toinho visita-o uma vez por mês. Corta seu cabelo. Miguel faz o mesmo no ex-sócio.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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