Dona Finha não mora mais no quarto nos fundos do casarão construído pelo coronel; fora mandada para lá, para acudir-se do sopro vindo do rocio doentio, o mesmo que o coronel espreitara em sonho, prevenindo-o da morte súbita caso fungasse o cheiro da roça de mistura com o vinhoto extraído da cana. A velha, ainda com apuro no olfato, não amofinou-se de agouros. Numa noite, saiu do quarto, foi para o terreno do lado de fora. Chovera, mas a lua de luz cheia deu conta do mato luzidio, do açude embaixo espelhando feito uma candeia larga. Sentou-se, dona Finha, sob os galhos da jurema de onde tirara talos de raízes e ramos verdes; espremera-os entre dois seixos sem pontas, untara-os com a água da fôrma até a beira do copo de alumínio. O líquido espumou-se, ficou da cor de vinho. Ela bebeu sem esgar nos beiços vincados, depois deu dois tragos no cigarro da mesma raiz. Fechou os olhos à espera do transe. Não demorou e estremeceu a cabeça, as pálpebras. Com os olhos ainda sem encher-se do luzeiro nos ramos, assombrou o juízo vendo o tombo do coronel na varanda do casarão novo. Dormiu ali mesmo, sob os ramos da jurema. Acordou para molhar os olhos, o rosto, toda a cabeça na cisma de remover a premonição. Desceu o Alto da Maravilha com as pernas trôpegas, sem medo de espinhos nem de seixos pontudos na sola caliçada dos pés. No alpendre do terraço do sobrado, o coronel há dez dias tinha os sentidos na volta da velha Josefina. Quando a viu surgir na esquina do arruado, suspeitou que o juízo da velha podia estar tão manco quanto seus passos; ainda assim, sem bulício nas pregas do rosto, mirou a caminhada de dona Finha até ela subir os degraus do terraço. Consentiu que sentasse numa das cadeiras, de seu lado, a mesma usada por sua esposa na prosa monótona depois do jantar. - Não vá, coronel. Se o senhor botar os pés na varanda da casa, não vai aguentar o sumo de morte que vem do vento; vai cair sem vida ali mesmo, no chão de cimento duro. - História é essa, Zefinha!... Sinto o cheiro do vinhoto há quarenta anos e só peguei gripe; mas por causa de chuva. Vá, arrede, vá pra cozinha tomar café com beiju. À noite, a conversa no terraço deu-se com exaustão, tão densa quanto a fumaça sussurrada no bueiro da usina. - Nós vamos de roupa e móveis para a casa nova? - insistiu a esposa. O marido a chamara de Quíria até os traços de mocidade sumirem de vez. Agora, na frente das duas cunhadas já viúvas, sonorizou com autoridade todas as sílabas do antenome: - Vamos sim, Valquíra. Nem meu avô, nem meu pai tiveram medo da guerra. Um vento à toa vai me assustar!... Não tinha brasão de família, o coronel. Mas a lembrança de seu avô, que escapara sem ferimentos à guerra de 1710, entre mascates de Recife e latifundiários de Olinda, fez inchar o orgulho dos antepassados. Valquíria, curvada aos quarenta anos de mando do marido, não deu sinais de contrariedade no rosto de olhos caídos. As duas irmãs, familiarizadas com a morte, olharam-se com apreensão pouca; mais para terem a chance de se mostrar atentas ao destino do cunhado. Da cozinha, dona Finha foi aprontar uns restos de roupa para levar ao casarão. Fora a primeira a sorver o sopro agourento vindo do horizonte, banhando o rocio no terreno abaixo; ali, nenhuma roça dera frutos, inda que as folhas do inhame dessem conta de um verdor luzente. Agora, vergada ao instinto do coronel, ingurgitou o mesmo sopro. Enquanto a família do coronel não se mudasse de vez, deixou-se levar pelo transe duas vezes pelo cauim espremido da jurema; nas duas, sentiu o bafio de morte nas águas serenas do açude. Mesmo com o vento mudo, as águas, conforme a visão da velha, enchiam-se de uma força maior que a fuligem mortífera saída da chaminé. Nem o cheiro carregado de vela queimando, vindo do açúcar bruto, conseguia entranhar-se nas frestas do casarão. A morte do coronel ocorreu quando, depois de jantara com a mulher e as duas cunhadas, subiu para a conversa miúda no terraço. Dona Finha, entregue à jurema, viu-o sem vida; já não sentiu susto, a velha. As três irmãs se mudaram para uma rua coberta de asfalto, em Goiana. Os agregados, cada um voltou para o sítio de origem. A fama de agourento cobriu o casarão abandonado. Dona Finha atende a consultas sobre passado, presente e futuro, na casa de taipa à beira do rio Goiana. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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