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Contos
01/07/2012 - 17h00
As cinzas
Marco Albertim
 

As cinzas do coronel foram jogadas do Alto da Maravilha, para onde se mudara uma semana antes. Sonhara, bem antes, que se fosse morar na casa recém-construída, não teria mais de uma semana de vida. Ora, no sobrado onde a um resmungo seu até a chaminé da usina interrompia o sussurro de fumaça, fruíra com incompletude o domínio do canavial; daí a ordem de construir o casarão no alto, com vistas para o canavial curvado ao vento e a sua vontade; mais a sua vontade, posto que o vento e as chuvas tornavam fértil o massapê seco boa parte do ano. Por quarenta anos, espreitara sem dar ordens, o passeio curvo, autômato, dos homens no eito, na esplanada em frente ao moinho; na locomotiva arrastando os vagões carregados de cana cortada; em cima, cambiteiros mudos, só a locomotiva guinchando, para logo deixar a carga ser engolida na esteira, nas entranhas do moinho.

Há quarenta anos, André Palhares, português, então proprietário das terras e do moinho, dera-lhe procuração para gerir todo o negócio. O coronel, ainda sem a patente que outorgara a si, mas com fumos de guarda-livros, fez uso da procuração feito um lince que tem sob os dentes uma inocente lebre. No cartório, inda que perplexo, o notário reconheceu no escriturário o direito de posse sobre as canas, o açude, o moinho, a locomotiva, a esplanada de terra seca, o casario com o sobrado maior, bem como a vila miúda onde cambiteiros se espremiam para dar lugar à voragem da palha, das raízes do canavial.

André Palhares, bisneto de reinol que prosperara como mascate e sobrevivera à guerra entre latifundiários de Olinda e comerciantes de Recife, também tinha estofo de fidalgo. O bisavô se apropriara da usina, fazendo uso do empréstimo que concedera a um latifundiário falido, incapaz de concorrer com a indústria de rapadura nas Antilhas.

O guarda-livros, crendo-se portador de sentimentos nativistas, creu-se mais ainda autor de um resgate natural. André Palhares, com suspeitas de ser involuntário dissidente da linhagem legada pelo reinol, voltou para o Setúbal junto com a mulher e oito filhos. Hoje moram numa aldeia, agregados a outro ramo da família Palhares.

Um dia um operador de máquinas, cumprindo ordens do fiscal de campo, pôs-se a derrubar um trecho de mato virgem. A lâmina do trator esbarrou numa pedra. Supondo ser um tronco de um mata-cavalo morto, insistiu. O velho trator, cansado, quase morto, sofreu avarias, o motor pifou. O fiscal de campo, antecipando-se aos urdumes do coronel, ordenou ao operador informar à oficina de manutenção; e em seguida submeter-se aos cálculos da contabilidade para a usina se ressarcir nos descontos de seu salário.

Chamou um cambiteiro, o fiscal, para com a enxada remover a pedra. A cavação deu conta de um diâmetro de um metro de pedra nua. Nada de o fundo ser atingido, menos ainda de remoção. A pedra, urdiu o fiscal, podia ser um estorvo na empreita do coronel. O fiscal de campo não fez uso de recadeiro; ele mesmo, com a precisão da língua, os olhos na retina do usineiro, fez o relato.

Um engenheiro foi chamado, um desses homens que auscultam a terra para ouvir-lhe o rumor das entranhas. No terraço do coronel, depois da ausculta, assegurou se tratar de granito. O coronel, comparando o rendimento da cana na área desmatada, com a venda do que poderia tirar do veio, quis saber por quanto tempo a pedra seria extraída.

- Daqui a setecentos anos ainda há o que explorar - adiantou o engenheiro.

O coronel, apoiando-se na cadeira com o respaldo de vime, não cobriu-se de rogo:

- E quando tudo se acabar, minha família vai viver de quê!?

Com tanto poder, mudara-se com a mulher, duas cunhadas viúvas e agregados para o casarão novo. O casarão afrontando os traços coloniais do sobrado onde vivera os derradeiros quarenta anos. Com tanto poder, não sentiu medo do anúncio de morte no sonho. Na varanda, mirando o açude espelhando sua riqueza, tombou à força da embolia.

A seu pedido, mesmo não acreditando na morte, foi cremado e teve as cinzas sopradas pelo vento no Alto da Maravilha.

Assim conta a negra Josefina, hoje com noventa anos, morando num quarto nos fundos do casarão.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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