As cinzas do coronel foram jogadas do Alto da Maravilha, para onde se mudara uma semana antes. Sonhara, bem antes, que se fosse morar na casa recém-construída, não teria mais de uma semana de vida. Ora, no sobrado onde a um resmungo seu até a chaminé da usina interrompia o sussurro de fumaça, fruíra com incompletude o domínio do canavial; daí a ordem de construir o casarão no alto, com vistas para o canavial curvado ao vento e a sua vontade; mais a sua vontade, posto que o vento e as chuvas tornavam fértil o massapê seco boa parte do ano. Por quarenta anos, espreitara sem dar ordens, o passeio curvo, autômato, dos homens no eito, na esplanada em frente ao moinho; na locomotiva arrastando os vagões carregados de cana cortada; em cima, cambiteiros mudos, só a locomotiva guinchando, para logo deixar a carga ser engolida na esteira, nas entranhas do moinho. Há quarenta anos, André Palhares, português, então proprietário das terras e do moinho, dera-lhe procuração para gerir todo o negócio. O coronel, ainda sem a patente que outorgara a si, mas com fumos de guarda-livros, fez uso da procuração feito um lince que tem sob os dentes uma inocente lebre. No cartório, inda que perplexo, o notário reconheceu no escriturário o direito de posse sobre as canas, o açude, o moinho, a locomotiva, a esplanada de terra seca, o casario com o sobrado maior, bem como a vila miúda onde cambiteiros se espremiam para dar lugar à voragem da palha, das raízes do canavial. André Palhares, bisneto de reinol que prosperara como mascate e sobrevivera à guerra entre latifundiários de Olinda e comerciantes de Recife, também tinha estofo de fidalgo. O bisavô se apropriara da usina, fazendo uso do empréstimo que concedera a um latifundiário falido, incapaz de concorrer com a indústria de rapadura nas Antilhas. O guarda-livros, crendo-se portador de sentimentos nativistas, creu-se mais ainda autor de um resgate natural. André Palhares, com suspeitas de ser involuntário dissidente da linhagem legada pelo reinol, voltou para o Setúbal junto com a mulher e oito filhos. Hoje moram numa aldeia, agregados a outro ramo da família Palhares. Um dia um operador de máquinas, cumprindo ordens do fiscal de campo, pôs-se a derrubar um trecho de mato virgem. A lâmina do trator esbarrou numa pedra. Supondo ser um tronco de um mata-cavalo morto, insistiu. O velho trator, cansado, quase morto, sofreu avarias, o motor pifou. O fiscal de campo, antecipando-se aos urdumes do coronel, ordenou ao operador informar à oficina de manutenção; e em seguida submeter-se aos cálculos da contabilidade para a usina se ressarcir nos descontos de seu salário. Chamou um cambiteiro, o fiscal, para com a enxada remover a pedra. A cavação deu conta de um diâmetro de um metro de pedra nua. Nada de o fundo ser atingido, menos ainda de remoção. A pedra, urdiu o fiscal, podia ser um estorvo na empreita do coronel. O fiscal de campo não fez uso de recadeiro; ele mesmo, com a precisão da língua, os olhos na retina do usineiro, fez o relato. Um engenheiro foi chamado, um desses homens que auscultam a terra para ouvir-lhe o rumor das entranhas. No terraço do coronel, depois da ausculta, assegurou se tratar de granito. O coronel, comparando o rendimento da cana na área desmatada, com a venda do que poderia tirar do veio, quis saber por quanto tempo a pedra seria extraída. - Daqui a setecentos anos ainda há o que explorar - adiantou o engenheiro. O coronel, apoiando-se na cadeira com o respaldo de vime, não cobriu-se de rogo: - E quando tudo se acabar, minha família vai viver de quê!? Com tanto poder, mudara-se com a mulher, duas cunhadas viúvas e agregados para o casarão novo. O casarão afrontando os traços coloniais do sobrado onde vivera os derradeiros quarenta anos. Com tanto poder, não sentiu medo do anúncio de morte no sonho. Na varanda, mirando o açude espelhando sua riqueza, tombou à força da embolia. A seu pedido, mesmo não acreditando na morte, foi cremado e teve as cinzas sopradas pelo vento no Alto da Maravilha. Assim conta a negra Josefina, hoje com noventa anos, morando num quarto nos fundos do casarão. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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