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Contos
16/05/2012 - 15h14
Aconteceu no Festival de Cinema
Marco Albertim
 

Penoso, crucial. As poltronas, tão juntas quanto alheias à separação de quem lhes ocupasse o assento, o encosto. Assim, o cineasta sentou-se ao lado da atriz. Urdia seus braços finos apoiando o corpo nos ombros do parceiro; nus, os dois, como na sequência de Hiroito e Adelaide em Boca. Não num quarto chulo de hotel, com enredos de gozos a preço da moda, incrustados nas paredes. Queria-a caminhando sobre as águas rasas do rio Timbó, até chegar num banco de areia, despir-se da musselina incômoda, acomodar-se no colo do moço seduzido; ouvir os gemidos dele, sem perder o domínio de iabá fluvial; fitando-o com os olhos miúdos, pálpebras quase cerradas, distinguindo nos gemidos a véspera da morte consentida.

Não confessou, o cineasta, mas comparou o ombro da atriz ao de Adelaide tomando café no balcão do boteco. No frio do ar-condicionado, ela se cobrira com um xale tão fino quanto os cílios inertes, absortos no meneio dos quadris de Adelaide sobre a cintura de Hiroito. O cineasta entreviu, entre um empuxo e outro dos dedos da atriz, a curva de seu ombro torneado, sem dar conta da costela. Na mira dos olhos dele, o ombro da atriz deixou-se enquadrar num ângulo de minúcia.

Penoso e crucial para o cineasta, temendo a recusa ao papel de uma diva cujo corpo se mostra e se esconde; no culto ao mistério. Ela, a atriz, da última vez em que aparecera na tela, vestira-se de colegial com blusa de mangas compridas, e um suspensório do mesmo tecido azul da saia; o suspensório cobrindo os seios já acolhidos no sutiã sob a blusa branca, espessa. Com os olhos na tela, a boca entreaberta, perplexa com o delírio de Hiroito sob o efeito da endorfina. A ninfeta engendrada pelo cineasta teria que usar sedas transparentes. Ali, no cinema, a atriz usava um vestido claro, cremoso o bastante para só urdirem suas ancas de trejeito cordato. Inda por cima, a seda da manta nos ombros; protegendo, espreitada pelo cineasta, convencido do conluio entre a fixidez dos olhos e o torneado dos ombros.

Súbito, a projeção é interrompida. A tensão que se desprende do amor retesado de Hiroito por Adelaide, não some de vez, pulveriza-se no teatro. Os comentários, mesmo soltos, confirmam o magnetismo da história. A impressão é de um corte na fita, como nos tempos em que se ouvia o ruído do aparelho projetor desatando luz no rosto sombrio de Humphrey Bogart, em Casablanca.

- Tivemos que interromper porque o filme tem seis rolos. Houve um pulo do terceiro para o sexto. Assim, é preferível não ir até o fim - avisa o diretor do filme, no palco, segurando um microfone, prometendo uma reexibição.

O cineasta não teve tempo de pôr fim aos urdumes de ver a atriz tão cabrita quanto Adelaide. Aceitou ser levado em seu carro para o hotel. Com os olhos na direção e o juízo no parecer do cineasta sobre o filme, arriscou:

- Hiroito está sendo vivido com a mesma força que teve em vida.

- Sem hesitação - completou o cineasta.

Não arriscou, ela, a comentar o perfil de Alaíde, prostituta antes de se juntar a Hiroito. O cineasta deu-se conta da incompletude, e do juízo castiço da atriz. Mais ainda convenceu-se de que, escassa de gestos, de palavras, baldearia o ventre ao descobrir-se ninfa num banco deserto de areia, com águas luzentes numa noite de vozes remotas.

Noite seguinte, Boca foi reexibido. A nudez de Adelaide mostra-se rica de contornos. Hiroito não consegue esconder o propósito do tráfico, da mercancia da libido. É preso, justo na voracidade sobre o corpo sedoso da amante.

A atriz e o cineasta, hirtos de excitação, levantaram-se da poltrona quando a tela nominou o último crédito.

- Tenho um roteiro para você! - Disse, sentencioso, quando o carro estacionou em frente ao hotel.

- Eu quero!


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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