Sabia que o delírio da febre prostraria-o por uma noite. Os sintomas, sentiu-os logo que desligara a plaina. O cabeçote fez o último recuo sobre a barra de aço oleada. Ele retirou o lingote de ferro cortado, com a superfície aplainada pelos açoites da navalha de aço temperado. Já aplainara uma ruma de lingotes, até de aço, inda que cru, presos no torno da plaina. O cabeçote recuando, depois avançando para dar conta dos golpes da navalha na crosta escura do metal. Um corte aqui, outro de lado, paralelos, até a extremidade oposta. O torno movimentando-se de través, entregando a presa de aço ao gume afiado da navalha; como num passeio de canoa, o cabeçote abrindo sulcos na peça, deslizando sobre a água apascentada. O juízo dele, dir-se-ia flutuante, também entregue à lisura da manobra. Retirou o lingote. A máquina soltou o último suspiro no fim da tarde. Coincidiu de, sem que sentisse, as pálpebras tremelicarem sobre os olhos miúdos. Ninguém percebeu, nem os atentos operadores de prensas com força para moldar chapas de ferro sob matrizes de aço temperado. Um ou outro tivera o dedo esmagado, por desatenção à descida da matriz sobre a mesa da prensa; o descuido de um segundo na reposição sucessiva de chapas e... A chave de cada um abrindo armários, feito gavetas na parede. Chuveiros abertos. O cheiro do óleo, da graxa nos macacões, a crença de que por uma noite e uma madrugada enxergariam no próprio sonho; não no do contramestre. Assim, ninguém viu a tremura nos cílios de Mundinho. O médico, nas vezes em que tivera licença para a folga, apurara os olhos para entrever o indício da febre terçã. Evitou o banho, trocando o macacão pela calça de brim sob a camisa de algodão. A negra Nô, que lhe fornecia refeições, nada viu de estranho no rosto de Mundinho; recebeu a quinzena de quem fazia uso de sua comida, com anotações numa mão e o dinheiro noutra. Mundinho olhou para a grama sob os pés com sandálias gastas. Incomodaram-no as mãos dos outros com unhas sem pontas, rentes à carne, como num desbaste na pedra do esmeril onde afiava o fio das navalhas. Em casa, a vizinha, no fundo do quintal, distinguiu o suor poroso em seu rosto. Contrariado, ele entrou no banheiro, um cubículo no lado de fora da cozinha de Hosana. Ela consentira que usasse o banheiro com o vaso sanitário de cimento, vez que, sendo seu inquilino, dispunha do varal para estender a rede onde dormia após a lavagem; a rede e o macacão depois de esfregado. Hosana era casada, mas sentia arrepios quando seus dedos tocavam nos de Mundinho, torcendo os punhos da rede encharcada do operário. Ele deitou-se na única sala da casa de taipa, sem reboco. Deitou-se na rede fria nutrindo-se de esperança de que o corpo febril cedesse à frieza do tecido. - Quer comer? – quis saber Hosana. Ela entrara pelos fundos na noite sem o lume do candeeiro nos aposentos do inquilino. O marido, com anos sobejos na idade, entretinha-se num jogo sem graça com vizinhos da mesma sorte. Segurou-o numa das mãos, sentiu um queimor de urtigas. Levantou-se, preparou um unguento tão amargo quanto a dúvida de que Mundinho podia dar conta dos urdumes de suas entranhas sentindo outro queimor. - É chá de mastruz. Beba. Bebeu sem agradecer nem dizer o que sentia. Hosana viu o bulício nos olhos dele, iguais aos do fogo-fátuo mortiço. Ela se levantou com o apagamento do piscar morto. Deitou-se em sua rede. O marido ainda no jogo de damas. Tirou proveito da ausência do pulmão barulhento do marido para encher-se do miasma sorvido sob a rede de Mundinho. Mundinho, por um ano, nos serões da manutenção da fábrica, dera conta de uma metralhadora a partir de um desenho entregue por um engenheiro. O cano, os pinos, a trava, a mira. Tivera a ajuda de outro, tão bom ferramenteiro quanto ele. Mas Inácio fora demitido; sem poder se manter na vila operária do Pirambu, fora enviado para a guerrilha, um tranco de mata só espreitado pelo juízo inquieto de Mundinho. Mundinho acordou ainda com a tremura nos olhos. Tirou a metralhadora de sob uma mala com roupas, embrulhou-a numa sacola. Sussurrando, viu-se tão guerrilheiro quanto Inácio. No encontro para a entrega da arma, ouviu a sentença do camarada engenheiro: - Você não vai para o Araguaia, não com os olhos da febre terçã... Em seguida afastou-se por segurança. A febre... O delírio... - Eu também quero ser guerrilheiro! Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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