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Contos
08/01/2012 - 10h06
Caixinha
Marco Albertim
 

Quando a caixinha de natal é posta na extremidade de um balcão, sobretudo no lado onde poucos se debruçam ou põem os cotovelos, há no jeito um modo tímido de abiscoitar o níquel dos outros. Inda que encoberta por um papel com desenhos floridos, uma estrela sem lume no papel fosco, com salpicos de excrementos de insetos, todo o visual apequena a ambição de pecúnia no escuro do nicho.

Hoje é 1 de janeiro. A caixa de Marluce está no mesmo lugar, sobre o balcão de cimento sem tinta, aplanado pela colher do pedreiro, mas alisado por mãos inquietas como as suas, no trato com o pescado objeto de seu comércio. As cores do papel confundem-se com as do vestido largo, no corpo redondo feito um tonel; não anda se arrastando, a gorda, mas move-se não a partir das pernas e sim com a força de cada um dos lados do corpo, um de cada vez. O mar está na frente de sua birosca. Ela não o olha; para quê? As vitrines de lojas não exibem manequim no molde de seu corpo. Poderia se deixar medir por uma costureira, na confecção de um maiô adequado ao perfil de matrona. Preferiu adequar-se à época - aumento do lucro com a venda de crustáceos, moluscos e peixes; e distinguir nos trocos do dinheiro pago pelos fregueses, a tentação da mostra de vaidades, ou de uma caridade inconfessa, introduzida no corte retangular da superfície da caixinha.

A gorda não tem empregados, a não ser um aposentado ocioso, que tira escamas e vísceras de peixes maiores, sobre a mesa de madeira na frente do terraço da birosca. O homem trabalha sextas, sábados e domingos, dias de consumo maior de peixes. Recebe 80 reais; a quantia é tão crepuscular quanto a hora em que é paga - fim da tarde ou quase noitinha do domingo. A bufunfa, diz ele, serve para entornar as pingas longe dos olhos inquiridores da gorda.

Quando não há ninguém para comprar sequer uma cerveja - ela vende cervejas e pingas e as resfria no mesmo freezer onde conserva os peixes eviscerados -, sopesa a caixinha, sôfrega de adivinhar o dividendo. Não é nada, adverte-se, mas é útil para manter a habilidade dos dedos na contagem das cédulas, das moedas. As moedas, assunta-se, tilintam confortavelmente nos ouvidos quando jogadas na gaveta; de preferência quando têm os sentidos da dona, só eles, como testemunhas.

O marido é um negro troncudo com pouco menos de sessenta anos. Fora pescador, bebera em demasia, deixou acumular ácido na urina e senta-se o dia inteiro com os tornozelos atados em gases, sobre uma almofada em outra cadeira. Às vezes grunhe feito um menino, com as dores da gota.

- Gota não tem cura... - ouve.

- Mas eu não tenho diabete! - conforta-se.

Quando a gorda vai à padaria perto, na avenida, ele levanta-se para descamar os peixes encomendados. O freguês está ali, vendo a agonia purulenta nas pernas do negro com rosto de anfíbio. Não sente repulsa. A fama de Zildão como pescador experiente, antigo, cresce a cada dentão tirado do freezer. O peixe é vermelho e tem os dentes grandes, afiados como os da piranha. Zildão não pesca mais, empresta o barco a motor ao filho de trinta anos. Mimo é um bom mestre, inda que não troque uma palavra com a gorda, sua madrasta.

Na padaria, nos caixas, há moças recebendo dinheiro e passando troco aos clientes. As filas são grandes. O ambiente é refrigerado. Junto a cada moça, há uma caixinha de natal e de ano novo. Quando uma quantia é depositada, a moça do lado grita: Caixinha! - Obrigado, ouve-se a resposta das outras, uníssona, aguda.

A gorda comprara óleo comestível, vinagre, sal e tempero verde para o almoço. Em frente ao terraço da birosca, do outro lado da rua estreita, há três mesas sob uma coberta de zinco; ali ela serve almoço a três operários da construção civil. Têm salário certo. O mais velho é o mestre encarregado da obra. Mas a gorda recusa-se a vender fiado, mesmo sabendo que receberia o dinheiro no fim da quinzena, quando os homens são pagos. “Não posso. A padaria não me vende fiado!”

Ela aprecia o grito de agradecimento das moças. Em sua birosca não há ninguém para gritar, só o marido grunhindo com a gota.

De volta, depois de guardar as compras na cozinha, tem nos ouvidos a sonoridade das vozes das moças. São bonitas e têm os cabelos lisos como os de Marluce. A gorda rasga o papelão da caixinha. Apalpa meia dúzia de moedas e duas ou três cédulas de dois reais. Depois, confecciona outra caixinha e põe no mesmo lugar da primeira; tão multicor quanto as da padaria.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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