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Contos
06/08/2011 - 15h09
Não havia peixe na camboa
Marco Albertim
 

A tropa acantonou no fim da tarde anterior. Um punhado de aningas fora cortado, rente à raiz, na margem do rio Goiana. Se o inimigo, do outro lado, abrisse fogo, a artilharia do exército, ruidosa, ininterrupta, cortaria feito uma tesoura a outra margem. Com a noite se anunciando, ouviam-se grilos e caçotes à cata de fêmeas. Aqui e ali, os vaga-lumes faiscando davam conta de um festim fluvial. Uma capivara perdida, chapinhando na lama, confundia os ouvidos; a usina, com a semeadura das canas, afugentara-as; por isso mesmo, o capitão à frente da tropa, pôs-se desconfiante até do rasgo da coruja.

Da rodovia acima, viam-se fogueiras acesas, meia dúzia delas fazendo um meio-calor e repelindo as carapanãs. Sobretudo da ponte sobre o rio, o cenário era de um acampamento de pescadores. Nada se cozinhou, visto que a ração usada era de enlatados. O fogo crepitando galhos secos de eucalipto, misturando-se ao cheiro da calda da usina despejada no rio, infestava o ar com um vapor de vinagre.

- Se alguém do outro lado atirar em nós, respondam com fogo cerrado. Se no amanhecer o inimigo for visto, atinjam abaixo da cintura – ordenara o capitão.

Bia chegou num jipe sem capota, dirigido por um soldado; sentado na frente ao lado do motorista. Atrás, outro soldado. Já carcereiro, ajuizou-se também intendente. Ao modo dos militares, dissera a Dejinha para encher de pães um saco de farinha de trigo; contara com o auxílio do dono da padaria. Os dois, gratos às tropas por terem afastado a chance de os camponeses invadirem mercearias, padarias, juntando comida para o caso de guerra civil.

Deram-lhe um revólver, não uma máuser automática de uso do exército; mas um 38 de cano curto, para disparos a curta distância. Filizola, o filho do senhor de engenho, cedera-a em troca da metralhadora que, àquela altura, portava sob o ombro.

- Não vá estragar munição! - advertira-o.

O banguezeiro, com 18 anos, dando mostras de perícia no uso de armas.

Bia sentou-se num banco à frente da barraca do capitão. O revólver, ajeitara-o na parte de trás da cintura. No banco com pés de ferro e assento de lona, a coronha salientou-se para fora da camisa; ele pouco se importou; nenhum soldado ali se armara tão somente de canivete.

Bebeu o café, ele, escorrido do bule sobre a trempe no massapé seco. Sorveu-o não como um militar, mas feito um matuto sem perplexidade ante o líquido forte, áspero.

Foi o primeiro a dar mostras de impaciência. Mas só entrou na canoa depois da autorização do capitão. O capitão não seguiria; só Bia, feito um capitão do mato, à frente de cinco soldados. No remo, um ribeirinho dali mesmo, contratado pelo carcereiro para transportá-los à primeira camboa. Na maré vazante, os cercados da camboa ficavam visíveis. Lá, conforme o guia, os canavieiros se juntavam a pescadores; depois de enfiar jundiás na embira-branca, corriam à casa de farinha; comiam, bebiam e urdiam a queima dos engenhos.

- Da derradeira vez, queimaram a roda do engenho de dona Sinhazinha - dissera Bia ao capitão.

Não havia jundiás na camboa.

- Sinal que já desbastaram o curral - advertiu.

Caminharam. Bia sempre na frente. Não demorou meia hora, depararam com uma velha de vestido comprido, segurando a mão de um menino. Os dois com as pernas finas, tão cinzentas quanto o massapé estorricado. O vestido era um trapo de rasgos. O couro do corpo, protegido por uma camisola amarelenta, quase cinza.

- Cadê Cirino, Josefa? - quis saber Bia.

- Ainda não levaram a encomenda...

Mais na frente, Bia sentiu fundir-se ao vapor do vinagre o bodum de carniça. Num charco afastado da margem do rio, jazendo no zumbido dos mosquitos, viu o corpo de Cirino. Os olhos fitos para o lado do rio, única esperança de vida para seu corpo sem vida.

A comitiva, já nauseada, seguiu. Na casa de farinha, estacaram.

Os soldados não cumprimentaram. Só Bia apertou a mão de Filizola. O banguezeiro, meio bêbado, pusera a metralhadora sob o banco de madeira. Uns restos de cachaça encorajavam-no, junto a dois capatazes, a um carteado sem graça.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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