O Cabeleira foi jogado sobre o catre de madeira, isolado numa cela. Olhando para a grade de ferro enferrujado, duro, sem lascas soltas, sentiu em dobro as dores no espinhaço socado. De sua cabeça no catre, para a grade, dois metros apenas; no entanto, tinha que fazer esforço para abrir as pálpebras, dar conta do que os olhos podiam enxergar. Passou a noite ali, sem direito a água. O soldado Garrafinha, posto que ordenara que lhe dessem um banho, antes que o enfiassem na enxovia, proibira o uso do caneco de flandre com a água salobra do poço. O banho fora dado com a água tirada de um tonel velho, tão frio quanto a umidade do quarto, o último do corredor de celas. Também os soldados tomavam banho na mesma água vinda do poço, nos fundos da Cadeia Pública; com a diferença de vir pelo cano de ferro e espalhar-se no chuveiro; a soldadesca tinha a impressão de gozar de privilégios. Os jorros no dorso do Cabeleira percorreram-lhe a medula já aberta em feridas; aos trinta anos, ele agoniou feito um velho enfermo. - Isso é o de melhor que nós podemos fazer por você, Cabeleira! - dissera Garrafinha. Garrafinha, tão soldado quanto o resto, mas com ascendência sobre todos porque chegara em Goiana no dia anterior à quartelada, com instruções precisas para pôr fim a todo indício de balbúrdia sindical. Delbrando, que dormira com os sentidos no tamanho da metralhadora instalada na Praça do Carmo, acordou com fome; lembrou-se da manteiga untada nos pães, distribuídos aos soldados pela velha Sinhazinha. Pães quentes, café fumegante nublando a umidade dos musgos na praça. A mando da avó, foi à mercearia de Bia comprar os pães do café da manhã. Dejinha, do lado de dentro do balcão, encheu o saco com crioulos, brotes, carteiras e franceses, conforme o pedido. Delbrando vira Bia no entra e sai de soldados e presos; na cadeia e na Cooperativa dos Plantadores de Cana. Valeu-se, pois, da frequência na compra dos pães para perguntar: - Dona Dejinha, cadê seu Bia? - Saiu... Há não mais de uma semana, a mesma pergunta fora feita. A resposta dera conta de compromissos com pagamentos a fornecedores, com a compra de mais gêneros. Agora... Não insistiu, Delbrando; deixou a merceeira confundir a branquidão do rosto, das mãos, com a palidez das bolachas no cesto largo de embira. O cesto era forrado por dois sacos vazios, de farinha de trigo; resíduos da farinha misturavam-se às bolachas. As mãos, os braços e o rosto de Dejinha, não raro mostravam manchas mais brancas que a brancura da pele. O casal pouco se importava, posto que desse modo davam mostras de prosperidade. Depois do café, Delbrando saiu com a mesma roupa da véspera. A avó chamou a atenção. “Tem grude na roupa, Brandinho!” Ele já cruzara o umbral da porta da frente, rumo à cadeia. Na rua da Feira, viu a banca de tecidos sem nada no tabuleiro. João Guerreiro, o dono, negociava estampados diversos no local. - Ele também foi preso... - ouviu Delbrando. Ouviu e acelerou os passos à Cadeia Pública. Não havia ninguém na calçada alta, sobre os três degraus. Os soldados fumavam na sala larga, entre as duas filas de celas. Do lado esquerdo, presos comuns fundiam nos olhos o respeito à farda ao interesse por hóspedes que, mesmo usando roupas iguais às deles, não podiam lhes falar. Subiu os degraus, Delbrando; esticou o pescoço num dos lados da velha porta e viu Bia conversando com um preso do lado direito da sala. Não ouviu uma palavra da boca do novo carcereiro, inda que distinguindo uma ou outra no bulício dos lábios. - Tá com sede? – perguntou Bia a Cabeleira. O preso não respondeu, mal podendo mover os lábios secos, com estrias cobertas pelo sangue coagulado. Olhou Bia pela fenda invisível das pálpebras. O carcereiro já o conhecia, observara-o nas reuniões do sindicato, do lado de fora. Saiu e trouxe o caneco de flandre cheio d’água. Cabeleira bebeu a água deixando escorrer a metade entre os beiços colados. O cabo Mancurica levantou-se da mesa do telégrafo. Do outro lado do fio, inquiriam-no sobre o nome completo de Cabeleira. O preso não respondeu; ao que Bia, de pronto: - Adauto José da Silva, 30 anos. Um Silva com sonho de grandeza... Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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