O menino recém-chegado na cidade, surdo-mudo de nascença, rapidamente tornou-se amigo do nosso grupo. Seu nome, Thiago, só ficamos sabendo depois, já que, pela sua ‘deficiência’, nos acostumamos de chamá-lo por "o Mudinho".
Relacionava-se muito bem com todo mundo, demonstrando desenvoltura e habilidade social, que fariam inveja a qualquer diplomata. Dentre nossas brincadeiras – peão, bola-de-gude, triângulo, pão-quente... – não abríamos mão do banho de rio, de vez em quanto, nas proximidades do cais do Potengi. Naquela tarde de sábado, já passando das cinco horas, relutávamos entre correr até ao rio, ou ficar por ali mesmo, zanzando pela rua Grande. “- Daqui a pouco escurece, num é vantagem não”, dizia um. “- Mas se a gente for na carreira?”... O Mudinho era o mais animado: “- Hum, hum. Hum, hum”, balbuciava, acenando entusiasmado que daria tempo irmos mergulhar no rio, todos! Chegamos ao Potengi eram quase seis horas. Sua água avermelhada, tingida pelo ocaso, com as jangadas coloridas ancoradas às margens, parecia um cenário de filme de arte. Tchimbungo, Tchimbungo, Tchimbungo, Tchimbungo... Pulamos os quatro, um atrás do outro. Tava morninha a água, uma delícia! De repente, vi o Mudinho sair rápido da água. Apontava para o rio, como se tivesse muito assustado. Arregalava os olhos, acenava que saíssemos: “- Hum, hum. Hum, hum!”, agitava-se, como se fosse ter um troço. Olhávamos para a água... Nada! Nada, além daquela beleza calma de fim de tarde no Potengi... Olhei pro Mudinho de novo. Agora arregalara os olhos mais ainda e precipitava-se pela escadaria do cais, olhando pros degraus pra não tropeçar e, ao mesmo tempo, para nós, acenando que devíamos correr também, sair da água, correr, fugir daquele lugar. Saímos da água e fomos a sua direção. Nesse momento, o Mudinho disparou na carreira, numa velocidade que nem bala alcançaria. Disparou em direção à rua Grande, em passos, marcados na areia de Natal, que deviam medir mais de dois metros. Seguindo seu rastro fomos dar em sua casa, havia lá agitação e corre-corre, gente se juntando à porta. Ainda teve tempo para rascunhar uns desenhos que davam para expressar muito bem o havia visto nas águas do Potengi, naquele fim de tarde de sábado. A criatura parecia realmente assustadora. Além de muito grande, seus olhos de fogo encadeavam qualquer ser humano que tentasse encará-los. O monstro parecia correr sobre as águas, como se viesse em nossa direção. Foi inevitável o infarte. Thiago Venâncio de Brito, o Mudinho, nascido em 14 de março 1925, filho único do Dr. Inácio Brito, advogado da Companhia Ferroviária, recém chegado à capital, foi sepultado numa tarde de domingo, um 11 de agosto de 35, diante de uma pequena multidão, estarrecida e perplexa com o que havia acontecido em nossa pequena província.
|