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Contos
02/12/2010 - 15h00
A alma das lanternas
Vany Grizante
 

Perto de completar 18 anos, Lin acreditava que tinha um problema de memória: não se lembrava de nenhum evento marcante de sua vida. Quando via fotos de seus aniversários ou de alguma viagem que havia feito com os pais, sentia algo como um agito interno, mas parecia que nada daquilo havia acontecido com ela: reconhecia os rostos, os cenários, mas não se lembrava dos acontecimentos.

Foi mais ou menos nessa época que Lin começou a aprender a confeccionar lanternas. Fazia parte da cultura de seus antepassados comemorar datas importantes com lanternas coloridas (que ela via, penduradas, em sua casa e na casa de parentes quando havia festas, mas, além da beleza que podia contemplar nelas, nada mais lhe diziam). Seus pais lhe explicaram que as lanternas simbolizavam a esperança, a ligação com tudo o que é espiritual – e, acima de tudo, a busca do conhecimento, da iluminação. Como era habilidosa, rapidamente aprendeu a técnica e saiu-se muito bem na arte de criar lanternas de papel de seda.

Assim, tendo em mente que as belas e delicadas lanternas coloridas simbolizavam a iluminação, passou a confeccionar uma lanterna para cada evento importante de sua vida. Quando conheceu seu primeiro amor, criou uma bela lanterna vermelha, com desenhos de coração; quando sua avó se foi, fez uma delicada lanterna branca com um dragão roxo estilizado.

E assim foi criando várias lanternas, cada uma com a memória de momentos marcantes de sua vida. Enquanto dobrava, recortava ou colava aquelas quase transparentes folhas de papel sobre finas estruturas de madeira, ia-se recordando do evento que lhes dera origem, pensando nos seus protagonistas, revivendo as situações, minuto a minuto, e alegrando-se (ou entristecendo-se) com elas.

Muitos anos se passaram. Lin agora morava em uma casa grande, com marido e filhos já crescidos; e, no quarto dos fundos, especialmente reservado para suas criações, havia um sem número de lanternas penduradas. Lanternas de todos os tipos e cores, com as mais variadas decorações. Quanto mais o tempo passava, mais primorosas se tornavam as peças - eram delicadas obras de arte a oscilarem, lentas e suaves, ao sabor da brisa que entrava pela janela, vinda do jardim.

Um dia Lin foi avisada que havia um problema em sua casa. Saiu rapidamente de onde estava e rumou para seu endereço, onde pode ver, incrédula, centenas de pessoas em sua rua, à frente de seu portão, olhando fixamente para o céu.

E no céu, em meio à névoa de fumaça acinzentada, um belíssimo filme passava. Havia cenas de alegria, de tristeza, de emoção; pessoas rindo e chorando, falando alto e sussurrando, gente nascendo e morrendo. Havia festas, viagens e funerais. Um filme cheio de vida e de personagens interessantes, de todas as idades.

Foi então que notou a fumaça cinza que subia em rolos por sobre o telhado, antes de transformar-se naquelas cenas. Sua casa fora atingida por um incêndio, que felizmente não tomou maiores proporções por conta da rapidez com que os vizinhos alertaram os bombeiros - e com que estes chegaram. De toda a casa, apenas o quarto dos fundos fora destruído. Quanto às cenas, ela as reconhecia, todas: eram os momentos mais marcantes de sua vida.

A alma das lanternas queimadas pelo incêndio subia aos céus, mostrando a todos aqueles curiosos espectadores uma vida repleta de momentos bons e maus. Na verdade, não havia nada de excepcional naquelas imagens: tratava-se de uma vida comum, como a de todos. A beleza do filme advinha de sua simplicidade extrema e dos pequenos mas importantes detalhes que muitas vezes passam despercebidos. E todos se reconheciam ali, vendo nas cenas a sua própria vida. Assim, depois que o incêndio acabou, cada um foi para sua casa pensando em como a vida pode ser bela, rica e interessante, dependendo apenas de como a sentimos e vivenciamos.

Lin ensinou seus filhos e netos a confeccionarem lanternas de papel de seda, a jamais deixarem de sentir com intensidade cada momento que vivessem e a amarem profundamente cada pessoa que fizesse parte dessa teia intrincada que se chama existência. A de Lin terminou de forma suave, depois de quase cem anos, cercada de amigos e familiares amorosos. E, recortadas contra o azul do céu, eram inúmeras as lanternas que coloriam sua despedida.


Nota do Editor: Vany Grizante (vanygriz@gmail.com) é arquiteta e escritora em São Paulo, SP. Escreve no site "Recanto das Letras" desde 2007. Publicou o livro "Abelhas sem Teto e outras crônicas" pela Editora All Print e participou da coletânea "Universo paulistano vol. II" da Editora Andross, ambos em 2010. Sua tese de mestrado sobre ambiente de trabalho na indústria encontra-se disponível para download no site: www.teses.usp.br.
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