Estávamos comendo caranguejo e tomando uma cerveja naquele sábado à tarde, numa barraca da Praia do Futuro, em Fortaleza, quando de repente aproximou-se uma cachorra preta, que aparentemente estava em fase de amamentar filhotes. Passou rapidamente por nós, como se tivesse um itinerário definido e no instante em que virei-me para observar melhor a direção que caminhava, já havia sumido em meio às tantas mesas, repletas de turistas e clientes. Fátima, a amiga que encontrava-se comigo, comentou que sua aparência era saudável e que portanto poderíamos concluir que provavelmente estava sendo alimentada por alguém. Não conseguindo localizá-la após uns quinze minutos de busca, tive a surpresa de avistá-la, do lado contrário, em meio a um quiosque em plena reforma. A distância não era tanta, e era perceptível a presença de dois filhotes, que imediatamente deduzimos serem seus. Tão logo encerramos nossa permanência no local, dirigimo-nos à obra mencionada, entusiasmadas para ver de perto a recente descoberta. Um macho de cor acinzentada e uma fêmea de cor mesclada em preto e branco estavam saltitantes, brincando com a mãe no interior da obra, enquanto chegávamos. Neste exato momento, a alguns metros dali, apareceu um cachorro sem raça definida que imaginamos ser o pai e que em seguida deitou-se à sombra de uma coluna de observação, erguida naquele ponto da praia, para trabalhos dos salva-vidas. Os dois filhotes eram muito lindos, parecendo que no futuro seriam maiores do que os pais porque contavam com apenas dois meses e já tinham desenvoltura muito boa e própria de animais bem nutridos. A cachorra havia dado cria há sessenta dias e seis filhotes já haviam sido doados, restando apenas o casal que ali pululava, de um lado para o outro. Um rapaz responsável pela obra apresentou-se e esclareceu que todos os operários revezavam-se nos cuidados necessários com as refeições da mãe e sua prole, motivo pelo qual os três demonstravam aparência tão saudável. Por algum motivo, imediatamente lembrei-me de uma obra, há anos atrás, na cidade de Ubatuba, que interditada há muito tempo chegou a ser ocupada por mendigos, cachorros e gatos abandonados, numa das ruas da Praia Grande. Em razão de uma denúncia, como integrantes da APAUBA - Associação Protetora dos Animais de Ubatuba, Lais e eu comparecemos ao local para averiguação. Quatorze era o número de filhotes que a cachorra preta, sem raça definida, estava amamentando no segundo andar daquele edifício completamente abandonado. Talvez fosse mestiça de dogue alemão ou de qualquer outra raça, mas por sorte era muito dócil e estava absolutamente convencida de que estávamos ali como suas protetoras. O local estava imundo e a questão judicial pendente tornava impossível a continuidade da obra. O acesso ao interior do edifício era precário e as condições em que ele permanecia existindo eram inimagináveis, tamanha era a imundície. Graças a Deus e com a ajuda de São Francisco a cachorra e seus filhotes não tinham ferimentos, mas estavam completamente infestados de pulgas. Haveria a possibilidade de que em alguns dias, com um pouco de carinho, vermífugos, medicamentos adequados e boa alimentação, estivessem prontos para serem levados a nossa Feira de Adoção da Praça Treze de Maio. Nos dois casos, o de Fortaleza e o de Ubatuba, existe a triste e coincidente ocorrência do abandono, que é fruto da maldade humana e que sempre causa certa comoção, qualquer que seja o tempo em que isso aconteça. Fico aqui pensando o que torna o ser humano capaz de abandonar um animal, jogando-o na rua? É preciso coragem! Muitas vezes a mãe e filhotes são atirados à rua! Qual será o dia a dia de quem comete essas atrocidades? Será que acredita em Deus? Frequentará algum culto no final de semana, mas no seu dia a dia livra-se das crias indesejáveis? Terá importante papel social? Será Presidente de Associação de Bairro, mas meio clandestinamente envenena os animais do bairro porque os imagina inconvenientes? Será pai ou mãe? Acreditará que suas verdades são as mais importantes? Que tipo de comportamento terá uma pessoa que abandona um animal? Terá a coragem de assumir perante seus amigos e familiares tamanha crueldade, vangloriando-se? Ou será uma pessoa dissimulada, que no fundo tem vergonha da própria atitude mesquinha? De todas essas perguntas nem um pouco agradáveis, com respostas talvez mais tristes, fica uma certeza: a de que aquela mãe preta e seus quatorze filhotes de Ubatuba tiveram um destino melhor e que essa mãe da Praia do Futuro e seu saltitante casal de filhotes seguramente encontrarão lares mais adequados, pois há sempre alguém disposto a proteger os animais nesse mundo. Existem pessoas que por conveniência ou egoísmo não consideram os bichos como seres passíveis de sofrimento e dor, imputando-lhes toda uma série de desgraças e crueldades. Apesar de ter acompanhado inúmeras histórias de atrocidades para com os animais, nunca perdi a esperança de que a humanidade passe a olhá-los com a reverência e a dignidade que merecem. O dia a dia dos seres ditos “humanos” seria muito melhor se houvesse respeito em relação a todos os seres viventes, pois como bem disse sensivelmente um compositor: Tudo que move é sagrado!
Nota do Editor: Evely Reyes Prado, reyesevely@yahoo.com.br, paulistana, formada em Direito pela PUC-SP, morou em Ubatuba por vinte anos, onde aposentou-se pelo Tribunal de Justiça - SP e foi integrante da APAUBA - Associação Protetora dos Animais de Ubatuba. É autora de contos em Antologias diversas, e dos livros “Tudo Tem Seu Tempo Certo” e “Do Um ao Treze”, encontrados através do site www.scortecci.com.br.
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