Ao meio-dia a avenida cobriu-se de uma fina cerração vinda do cais. Os dois cruzaram entre os carros, crendo-se cobertos pela bruma e distinguindo cada um dos veículos. Nenhum carro de polícia. No mercado, sentaram-se no mesmo boxe para o almoço. Manolo foi o primeiro a pedir, mostrando familiaridade com o garçom. Recebera a quinzena, um dinheiro murcho chamuscando-o no bolso. - O que lhe parece comer carne de porco-do-mato? – perguntou o outro. – É o que vai comer no lugar para onde vai. - A cozinha não dá direito a outra escolha? - Se gostar de plantas, poderá comer raízes, folhas verdes. - A sobremesa? O outro riu. - Aproveite o cardápio do Mercado de São José. Isto aqui é um restaurante de luxo comparado ao que vai ver. - Temos muitas frutas, mas cultivadas com agrotóxicos. Muitas são amadurecidas com carbureto. - Essa é a vantagem. Comerá frutas in natura, sem veneno. Poderá mastigar alguns bichos, tapurus talvez. Inofensivos, mesmo dentro do estômago. Melhor que lamber as fezes dos fascistas. - Já foi preso? – quis saber Manolo. - Por quê!? - Já enfrentou o inimigo em seu próprio terreno? É isso que quero saber. - Não. - Sabemos nos comportar aqui fora. Não perdemos a compostura. Mas não sabemos como faremos, de repente jogados num porão escuro. Só seremos revolucionários completos se formos homens para todos os momentos, inclusive sob a tortura. - Tem vontade de ser provado? Banca examinadora completa: delegado, investigadores e carcereiro. Cada um querendo arrancar um fio das informações que você tem na cabeça. - Não quero ser provado no pau-de-arara. Mas sem homens provados, não há revolução. O povo não confia em homens que não tenham a fibra de Gregório Bezerra. - Gregório Bezerra é o teste da verdade? - A verdade juntou-se a Gregório. Ele provou ser a verdade. Diógenes Arruda sofreu o diabo sob a tortura. A verdade se enriqueceu com ele. Depois de solto, pregou sobre a experiência que passou sob a fúria do inimigo. Foi uma vingança classista. - A verdade é abstrata. - A verdade é tão abstrata quanto revolucionária. Tão revolucionária quanto o feijão que vamos comer. O povo sabe disso. Os operários com quem trabalho sabem disso. - Por que ainda não se rebelaram? - Porque ainda não associaram o feijão à revolução. O reencontro não ocorreu conforme combinaram; seria dali a duas semanas. Caso um ou outro não comparecesse, voltariam ao local dali a mais duas semanas, repetidas vezes, até que se reencontrassem. Um mês depois, quando passavam no local onde depararam com uma mulher morta, Manolo ouviu dele: - Deve pedir demissão do emprego, para não chamar a atenção. Se sair sem dar satisfações, vão especular sobre seu sumiço. Diga que conseguiu vaga noutra fábrica, distante, onde dificilmente lhe reencontrariam. - Sinto alívio por não ter mais que andar ao lado da linha do trem. Você gosta de marcar encontros em lugares desertos. - Por aqui só passam vagabundos, bêbados, prostitutas como aquela que encontramos morta. Gente que não preocupa a polícia. - Como sabe que ela era prostituta? - Suposição. A aparência dela... – hesitou em responder – Voltamos a nos encontrar daqui a quinze dias. Caso eu não venha, volto quinze dias depois. Esteja preparado, desligado da fábrica. Manolo pediu demissão quando recebeu o salário. Choveu grosso. Chamou a filha da senhoria da pensão para sua cama. Não disse que estava desempregado, temendo ser rejeitado por estar sem ocupação. Coitaram à tripa forra, com direito ao doce de mamão feito por ela. Ocioso, assuntou sobre o perfil do homem que o levaria ao combate com armas de fogo. Ainda o intrigava a ignorância dele sobre a carnificina ordenada por Artur Oscar, em Canudos, narrada por cordelistas, repentistas. Por último, confessara de repente o ofício da mulher que fora morta ao lado dos trilhos. Podia ser uma prostituta, mas no Cais de Santa Rita outras mulheres têm ofícios diversos, até as sem-ofício, de passagem por ali. Fora preciso, o outro. Um mês depois estava no cais. Cinco da tarde. Uma chuva fina inquietou-lhe os nervos com a demora. Viu sem esforço que no outro extremo do pontilhão, acenavam-lhe com a mão, chamando-o. Era ele. Seguiu na direção, olhando para a frente, para o chão. Súbito, quando ergueu a cabeça, não viu ninguém. Quis voltar, mas seria um percurso maior que retomar a rua seguindo em frente, ao lado do cais, rente ao pontilhão. Quando se afastou dos trilhos, já na rua, dois estranhos saíram de um automóvel velho estacionado, uma Rural. Um deles era o que ele vira almoçando no mercado, sem tirar o paletó. Manolo foi puxado pelo braço, algemado. - O que é isso!? - Vai conhecer o inimigo por dentro. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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