O mais comum é ouvir um grito abafado, como numa dor. O ticuqueiro, após o corte dos cachos maduros de cocos, dá conta da própria conta para se assegurar da paga. O apontador embaixo anota, pouco se importando com a queixa, no grito, de que entre as palhas verdes não há mais frutos a colher. O vento gemendo empresta força ao gemido dos homens, salga-o com a acidez marinha. As águas se alvoroçam. Não as temem, eles, inda que urdam a posse das ondas na pesca de tainhas, reparando-os da paga miúda. Têm braços e pernas roliços, não mais grossos que a abertura nas peias de couro onde acomodam a sola de um pé, a curva de uma perna. Santina está a pouco mais de um quilômetro dali, do outro lado do rio que separa o arruado de casas do coqueiral junto à praia. Dá para ouvir os gemidos. Distingue o do marido com má vontade. A vida é difícil na colheita; sem a colheita, então... Baltazar quer, quase forçara uma prenhez. Ela recusara, recusa-se a ter um filho segurando-se numa de suas pernas, enquanto a mãe mexe o feijão na panela de barro, com a colher feita da quenga do coco. O menino cheirando o feijão encardido no cominho, no naco de ossobuco. Quando não está em casa, o marido senta-se no pela-porco. Na frente, a bodega que vende cachaça aos ticuqueiros; na safra e na entressafra. Bebe fazendo caretas, esconjura o demônio. Bêbado, volta para casa... - Tem jeito de curar essa bebedeira, não!? - ...! - De dia, geme no olho do coqueiro; de noite, geme de cachaça! Num vou aguentar essa vida não! Tô avisando. O dia flagrou-os mudos. Ela espremendo o pano do café ralo, no bule amassado de ágata. Fora verde a louça, oliva, com flores em alto-relevo. Com as quedas, as flores sumiram, deixando estrias na pintura. No tédio, Santina perdera a conta das vezes que derrubara o bule do fogão de barro, sobre a trempe de madeira. O café derramado, o vapor subindo junto à parede do massapé enegrecido. - Vai tocar fogo na casa, Santina! - Que me importa... - Volte pra casa de sua mãe. É o melhor a fazer. - Deixe o dinheiro do pela-porco comigo que eu compro passagem. - A vontade é sua. Assuma a despesa. Assumiu a má vontade de espremer o pano do café. Ele, calado, olhando o pão que sobrara da noite; não o comera porque, entornando a cachaça, entretera o estômago com as sardinhas na gordura, no sal, da caixa de madeira de Seu Arlindo, da bodega. Seu Arlindo da bodega tem dinheiro, tem filhos na escola. A mulher não se nega à prenhez; é gorda, tem varizes nas pernas mas cozinha o feijão num fogão a gás, com charque, muito charque. - Um dia quem vai embora sou eu – diz ele, sentado no pela-porco. - Tem coragem de deixar a mulher, Baltazar? - Num quero deixá-la na rua. Mas tenho fé em Deus de devolver ao pai, de onde roubei. - Ladrão de mulher não se arrepende, rouba outra... A colheita teve fim um mês depois. Baltazar juntou-se aos outros na pesca da tainha. Com o alvoroço das ondas, foram à camboa. Águas escuras, confundindo-se com a vegetação do mangue, na lama que soluça na raiz das aningas. A rede fora jogada. Ele deitou-se com a cabeça na popa da canoa. O parceiro fez o mesmo na proa. As outras canoas, distantes umas das outras para dar espaço ao comprimento das redes. Santina em casa, sem ouvir os gemidos do marido no olho do coqueiro. - Huuui... Imita-o, mas geme os sentidos na fruição da bíblia que trouxera quando fugira com Baltazar. Entregara-se com o juízo no macho e a descrença no casamento sem a unção de Deus. Ter um filho sem o óleo santo da Igreja, seria viver sem regras, abastardar-se. Baltazar chegou na boquinha da noite, com meia dúzia de tainhas atadas com a embira nas guelras, nas bocas. Fez a moqueca, ela. O coco, ralado e espremido antes da pescaria. Comeram. Noitinha, descansados, ele procurou-a na cama. Feito uma vestal, ela entregou o sexo cru, a vagina seca, sem sede. Forcejando-a, ele viu um esgar num canto de sua boca, logo desfeito para dar lugar à quietação morta do rosto. Levantou-se sem brusquidão. No banheiro, com as pernas entre a bacia de alumínio que enchera, asseou-se, livrou das entranhas o sêmen vicioso. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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