Chovera. Ainda que o trator tivesse cavado três metros, a areia exposta não se mostrava escura, lamacenta feito o massapé. Fácil seria convencer que a terra escavada era fértil, apropriada à roça; com a conversa do técnico, a força da pá mecânica, o ruído do motor no arruado... Inda por cima com a presença do juiz... Sem a toga mas confirmando os indícios de fecundação do solo. Depois, a meia dúzia de mal-encarados ao lado da Veraneio, não podia ser só para intimidar; bem-vestidos, com os rostos carregados mas sem jeito de mentiras nos olhos miúdos de tanto mirarem. - Até no deserto de Israel as areias produzem frutos. Depende do adubo utilizado no solo. No deserto de Israel, as maçãs crescem vermelhas, frescas do sumo que contêm. Em volta da cratera, do outro lado do juiz, do técnico, pouco mais de uma centena de homens, mulheres, crianças queriam acreditar. Mas os anos de trato com a terra mantinham-nos frios, os pés desancados do chão mole, branco, com a palidez das águas. O técnico se referira ao deserto, e sentira-se no deserto. Calou, olhou para o juiz, para o administrador do engenho. Os homens ao lado da Veraneio, olhando-o, não diziam nada com os olhos; não entendiam de terra, não queriam entender, vieram para dar autoridade ao usineiro. Já os olhos do juiz e do administrador, fitando-o, disseram-lhe para continuar a peroração. Fora pago, estava sendo pago para persuadir incrédulos camponeses de que a palavra de um técnico agrícola é digna de crença, prenhe de milagres. - Não precisam se preocupar com as despesas de compra dos adubos. A usina vai comprar tudo para vocês. É espalhar e semear... A mulher de vestido longo, desbotado, pés descalços, não tirou o chapéu de palha da cabeça para falar... - Isso aí parece mais areia da praia, só aceita capim e pé de coco! O juiz, impaciente, não se empertiga no paletó de linho, da cor da terra escavada; vale-se do traje mas tem a voz meio cambada com a indiferença dos muitos rostos vincados pelo sol. Diacho de camponês! Com a terra nos olhos, nas mãos e não se animam para desamarrar as coivaras. Uma dúzia de coivaras! Em um mês a terra estará pronta para o plantio! - Todo esse engenho vai ficar com vocês. Em troca vão ceder os sítios de cada um para a usina. É simples. Também as casas do arruado vão ficar com vocês. Silêncio. - Não vão pensar que os sítios onde vocês moram já é de cada um por decisão do juiz. Não é verdade! Impacientara-se. O advogado, até ali mudo, ensaia um quê de insurgência... - Doutor juiz! Me dê licença que eu quero falar com os camponeses. - Não faça isso. – chamou-o à parte – Estou sofrendo pressão de todos os lados. A Polícia Federal está aqui! A saída é um acordo. Eles ficam com o engenho e entregam os sítios à usina. O advogado junta-se aos trabalhadores. - Os sítios são de vocês. Já há decisão judicial neste sentido. Foi o próprio juiz quem assinou. Agora ele quer desfazer com um acordo. Vocês decidem. A mulher de chita desbotada, apoiando-se na ponta do cabo da enxada, olha para o juiz, diz para ele, pouco se importando com o arremedo de inquietação do advogado: - Dotô... O salaro que a gente ganha na semana só vai até a quarta-feira. O resto dos dia a gente tira dos sítio. O ajuntamento tem fim sem acordo. De volta a Ipojuca, o advogado segue em seu próprio carro. De seu lado, o juiz não consegue esconder o padecimento. Na Veraneio, atrás, os homens da polícia seguem sem nada comentar; deram sinais de querer ficar no arruado, na espreita, mas não tinham feição nem modo da gente do lugar; um que ficasse seria encarado como intruso. - Ponha-se na minha situação! – o juiz mortifica-se – Não posso invalidar a sentença. Em meu lugar, o senhor faria o quê!? - Isso não é comigo. O juiz insiste. Não era duro, o advogado; mas convinha se valer da resistência dos camponeses. - O senhor tem duas escolhas. Rasga a sentença ou vira um homem! Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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