Ouviu a pergunta à queima-roupa: - O senhor tem parentesco com o diabo? Diabos! O diabo se envolvera tanto nas gravuras que qualquer vulto de gente, com um par de chifres na testa, seria confundido com ele; mesmo significando marido de mulher adúltera, eram vistos como cornos-do-diabo. Diabos! Ele olhou para as duas paredes, uma de cada lado do birô onde se debruçara, e viu na gravura do papel liso, em preto e branco, um diabo sendo engarrafado por uma mulher de cabelos compridos. O par de cornos, orelhas largas, nariz pontudo e o rabo com uma seta na ponta. Os bois não têm seta na ponta do rabo, mas convinha lhes pôr uma para distinguir o perfil satânico. Demais, o porte do pequeno diabo submetia-se, dócil, ao propósito de morte da mulher; de morte na própria morte. Junto à garrafa uma cobra com a peçonha esticada, sob a cauda do diabinho. A mulher, inda que mulher, arvorando-se superior, maior. Como parentesco com o diabo?! - Busque no cartório a árvore de meus parentes. Verá que nos pertences, tem apenas fina gente. Se da busca, no entanto, restar suspeita de outro agente, volte aqui com a serpente, que do diabo não sou aderente. Familiar aos cordéis, o bruxo, como num repente, creu ter enxofrado o repórter. As paredes, todas enfeitadas com gravuras de diabos, deram-lhe forças. Andando com a ajuda de uma bengala, nutria-se, nutriu-se dos fluidos das criaturas criadas por si, amansadas, num colóquio mudo com ele. - Não use de todo o enxofre! – disse-lhe um dos diabos – Se fizer uso de tudo, ele não terá nenhuma porção para se defender. O diabo queria ver os diabos se pegarem... O repórter percebeu só um ricto num canto da boca do bruxo. - O senhor me fez coitar com São Brás, São Carlito e São Benedito. Usou as forças que o céu me deu. Agora vai enxofrar esse pobre que está numa terra estranha! A rapariga que o bruxo fizera chegar ao céu, tinha uma das mãos segura por São Pedro. O diabo, segurando-lhe os pés, não tinha forças para impedi-la de entrar. Com duas chaves na outra mão, o santo barbudo, contudo, fixava-se nos olhos do bruxo. O criador afrouxou-se. O repórter, inda que arrependido, convenceu-se de que o pintor e poeta tinha parte com as criaturas de sua lavra, com bichos de sete cabeças, dragões do agreste friorento, acatingado. - O senhor não quer responder às minhas perguntas. Não respondeu por si. É um transe soprado pela caatinga que vem de seu quintal. Por isso trabalha aqui. É inspirado pela brisa que vem dos cascalhos. Acredita em cavalarias descendo as pedras dos montes no agreste? O bruxo perdera a fala, o bastante para deixar o repórter estuporado. Cansado, sentiu inveja do marido que, no mesmo quadro, segurava o punho da esposa que com uma faca queria furar o diabo para entrar no céu. Ele a corneara, ela fora doentiamente ciumenta. São Pedro recusava-lhes a entrada. Ele, o bruxo, crera em cavalarias, mas antes dera créditos a onças, cobras de dois rabos, mulheres com dentes caninos e a um homem montado num peixe de quatro pernas. A mulher lobisomem tinha quatro pernas, uma ruma de mamas sob a barriga, rabo curto, torcido feito o de uma porca; cabelos lisos, compridos, traços finos no rosto. Cambado, o bruxo seguiu para casa ao lado do ateliê. O repórter seguiu-o com os olhos na perna quase aleijada, comparou-a às criaturas bizarras nas gravuras. O homem estava vestido com uma camisa xadrezada, calça frouxa, abundante, feito um sans-culotte tardio. O repórter ainda arriscou: - Tem hora marcada com os bichos! Por isso está se escondendo... No quarto, o bruxo já deitado viu-se cercado de lontras resistentes ao calor, diabos dóceis, cabras de asas. Um boi com apenas um chifre num dos lados, suplicou-lhe: - Ponha-me outro corno no lado vazio. Assim não fico mais tonto. Uma galinha com chifres, cocoricando, pleiteou a encolha das pontas para o galo encruzá-la sem riscos de acidentes. Com os olhos quase fechados, ele ouviu guinchos, zurros, bramidos, mugidos, trissos. - Fiz bodes sem chifres e cabras mugindo, anjos chifrudos e diabos balindo... Quis continuar os versos, mas dormiu para pôr fim à assembleia dos bichos. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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