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Entrevistas
04/02/2010 - 18h02
“Os brasileiros estão, sim, lendo mais!”
Agência Brasil Que Lê
 

Quem dá a boa notícia fala do alto de sua experiência como professora doutora da Faculdade de Educação da Unicamp, organizadora de COLEs (o Congresso de Leitura do Brasil) e presidente da Associação de Leitura do Brasil (ALB). Os brasileiros, sim, estão lendo mais! Não só livros, jornais ou revistas, mas também bíblias e manuais, seja em suportes impressos, seja em digitais, ou comprados, emprestados, doados ou achados. Não importa. Norma Sandra de Almeida Ferreira diz isto sem medo de errar, amparada tanto em estudos como Retratos da Leitura no Brasil e a pesquisa do INAF, como também pelas dissertações e teses produzidas nas universidades. “Até os anos 80 havia um discurso de que ‘o brasileiro não lia’, ‘lia pouco’ ou ’lia mal’, mas baseado em pesquisas que apontavam a quantidade de leitores pelo número de livros vendidos ou de jornais e revistas assinadas”, afirma ela, em entrevista exclusiva à agência Brasil Que Lê.

Estudos têm mostrado que o Brasil estaria lendo um pouco mais, com mais leitores com acesso a livros e a outros suportes. Os brasileiros que já liam estão lendo mais, ou menos? A leitura entre os brasileiros melhorou, ou piorou?

Realmente, até os anos 1980 havia um discurso que afirmava que o “brasileiro não lia”, “lia pouco”, “lia mal”, apoiado em pesquisas que apontavam a quantidade de leitores pelo número de livros vendidos e de jornais e revistas assinadas. No entanto, pesquisas mais recentes, como a do INAF e Retratos de Leitura do Brasil, e também dissertações e teses de doutorado revelaram que os brasileiros leem mais do que pensávamos, em gêneros e suportes de texto diversos, como: bíblia, revistas, manuais de instruções impressos ou digitais, comprados, doados, emprestados etc. Também as políticas públicas mais recentes investiram na aquisição de acervos de livros para as escolas e na criação de bibliotecas, o que colocou a discussão não mais apenas no acesso, mas nas práticas de leitura que lidam com esse acervo. Porém, saber se a leitura melhorou ou piorou quanto à qualidade e ao modo como se lê, é difícil dizer. Parece haver aí um juízo de valor, quase a ideia de que há alguns modos de ler, gêneros, finalidades de leitura melhores do que outros. Não há um modelo ideal de leitura e de gênero. Prefiro, então, entrar nesta questão pela ideia da diversidade e não da qualidade. Com certeza, temos lido mais porque na sociedade contemporânea somos obrigados a ler e estamos expostos a mais situações de leitura.

Temos lido diversamente, movidos por diferentes finalidades, interesses, textos marcados por gêneros discursivos também diversos, com práticas de leitura distintas. Aquele modo de ler, por exemplo, mais linear, uma página após a outra, como prática silenciosa, absorta e individual, a exigir um tempo e um fôlego maior do leitor, como é o modelo de leitura da literatura, parece não ter a mesma força que já teve nos séculos XIX e XX. Os leitores de hoje parecem mais envolvidos com leituras rápidas, fragmentadas, simultâneas, em suportes diversos, que não só o impresso. Também muitos leitores de hoje estão envolvidos com uma literatura que ganha força na mídia, que migra para outras linguagens (televisão, cinema, resenhas na internet) e que é altamente selecionadora do que se lê, de como se lê (por partes), do que se quer ler (sobre vampiros, por exemplo). As pessoas que já liam, provavelmente estão lendo mais, incluindo em suas práticas de leitura também essa, que é a da leitura mais rápida, simultânea. São leituras distintas de um modelo no qual fomos formados, que têm como paradigma a leitura da literatura considerada uma, entre outras produções culturais; que expressa, de forma estética, um modo de ver, de pensar, de sentir, de alguns homens do nosso e de outro tempo. Uma produção que é legitimada, reconhecida e valorizada por um grupo que participa da distribuição e da organização do conhecimento na sociedade. Uma leitura que pressupõe um pertencimento a uma comunidade de leitores que tem em comum: habilidades específicas de compreensão, que produzem sentidos compartilhados, que conversam sobre o que leem, que trocam os livros e os autores entre si, que criam referências culturais coletivas etc. Por isso, a escola, como instituição formadora de leitores de literatura, talvez possa insistir em um projeto que agregue: várias possibilidades de leitura; diversidade de expressões; alteridade de temas; confrontação com obras que tematizam o trabalho com a linguagem, os sonhos, as ideias, os sentimentos dos homens de gerações anteriores e contemporâneas; explicitação dos critérios de apreciação do modo de criação e de avaliação das obras trazidas pelos alunos e pelos professores. Mas também um projeto que ensine a ler literatura, que é um modo específico de apreciar uma produção cultural considerada arte. Para muitos, o acesso a essa produção e ao seu modo de apreciação só se faz pela escola. E isto deve ser uma opção política: oferecer ao aluno a possibilidade de poder decidir o que quer ler e o que gosta, ajudando-o a fazer parte de uma comunidade que sabe e pode fazer escolhas.

O que deve ser feito, na sua opinião, para ampliar o acesso aos livros e desenvolver leitores cada vez mais exigentes?

A leitura é importante em uma sociedade letrada, pois ela é acesso para um tipo de conhecimento que se dá e que é divulgado por ela. Pertencer ao mundo da escrita é pertencer ao mundo daqueles que detêm o poder das ideias legitimadas, da circulação e da divulgação do conhecimento considerado científico, considerado patrimônio da sociedade. A escrita, desde o século XIX, exclui e estigmatiza aquele que não a domina (não foi sempre assim). Por isso, é importante que para uma sociedade que queremos mais democrática, mais justa, mais humana, as pessoas possam usufruir do conhecimento que vem também pela escrita através da leitura. Para ampliar esse acesso e democratizar a leitura, é preciso pensá-la como prática social, cultural e não individual. É preciso pensar em ações coletivas que envolvam toda a sociedade: livros mais baratos, mais acessíveis, bibliotecas bem equipadas, abertas e espalhadas por todos os cantos, projetos de formação de leitores diferenciados e frequentes etc. As pessoas não deixam de ler apenas por vontade própria, desinteresse, preguiça, má formação ou porque não valorizam a leitura e o livro. A pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, por exemplo, revela que as bibliotecas públicas são distantes dos usuários, com horário de visita restrito, com poucos funcionários à disposição. O que, talvez, possa minimizar esse quadro é o investimento no acesso a esses espaços destinados aos livros e também em práticas de familiarização com os ambientes letrados, com a apropriação dos gestos, dos gostos, dos valores, dos códigos que fazem parte do mundo letrado. É preciso dar condições para que os brasileiros comprem, escolham, optem pelos livros que desejam ler. Uma opção com propriedade e em toda a sua complexidade. Como exemplo, podemos pensar na ampliação para muitos da imagem de biblioteca como espaço cultural. Ampliar o horário de funcionamento (sábados / domingos; à noite), o quadro de agentes (animador, receptor, bibliotecário, estagiário), os parceiros (comunidade local, instituições privadas), o acesso por transporte a bibliotecas públicas, à programação que inclua a comunidade, além do empréstimo de livros (contação de histórias, leitura oral e coletiva de livros, teatro, visita de autores etc.). Se a comunidade não é parceira, sugerindo o que precisa mudar de acordo com suas necessidades e interesses, a biblioteca fica amorfa. Por outro lado, se o estado não propuser, não der condições para o funcionamento real desse espaço, também as coisas não acontecem. Uma outra ideia que deve ser mais bem configurada, pode ser, talvez, uma ação como oferecer “vales” para as famílias (que têm filhos matriculados na escola) comprarem livros diretamente nas livrarias. Uma iniciativa que pode permitir que as famílias frequentem as livrarias, espaço dos livros, além da biblioteca. Uma prática importante para a formação do leitor. Os leitores vão, escolhem o livro entre tantos outros, familiarizam-se com o modo como os livros são organizados e como circulam. Por outro lado, valorizamos também as livrarias locais, dando um outro movimento no modo como o governo tem tratado a compra dos livros que chegam aos leitores escolares.

O PNLL pode ser, na sua opinião, um passo institucional para implementar políticas públicas neste sentido?

Sim, o PNLL é um plano que intenciona articular eixos de atuação importantes em âmbito nacional, como: democratização do acesso do livro, da leitura, da literatura, a questão da formação da mediação, da valorização do livro, além do desenvolvimento de sua cadeia produtiva. O PNLL põe em evidência várias ações e projetos espalhados pelo país, traz o livro e a leitura na pauta da discussão em âmbito nacional, destacando-os como necessidade e prioridade nas políticas culturais. Por isso, acredito que o PNLL possa ser alçado a um plano de estado para avançar institucionalmente, além da política de compra de livros pelo governo. O PNLL pode institucionalmente ser identificado como orientador e mobilizador de políticas dos estados, dos municípios, das experiências não governamentais, das comunitárias. Não resta dúvida nenhuma de que a cadeia do livro – produtiva, criativa e mediadora – precisa avançar institucionalmente com uma política do livro e da leitura, articulada, séria e responsável.

E qual o papel de uma instituição como a ALB nesse contexto?

Penso que a ALB tem uma grande contribuição como um espaço que nacionalmente coloca a leitura e a educação do leitor como centralidade nas suas diferentes ações: promoção de eventos (Congressos de Leitura — COLEs —; Desafios do Magistério/Unicamp; Seminários O Professor e a Leitura do Jornal), publicações de periódicos (revista Leitura: teoria e prática; Anais, livros), Roda dos Pesquisadores em Leitura da ALB, entre outras ações. A entidade tem mais de 30 anos de existência e conquistou nesse tempo credibilidade e projeção tanto acadêmica quanto militante na área da leitura. Nos Congressos de Leitura do Brasil, os COLEs, por exemplo, o debate da leitura é fortalecido pelas proposições de novas reflexões e pelos questionamentos sobre a temática, pela divulgação de ideias, projetos, experiências, tendências no modo de encarar a questão da leitura no nosso país. São mais de cinco mil congressistas e mais de uma centena de palestrantes e conferencistas que contribuem com ideias, proposições e alternativas metodológico-teóricas. Penso, ainda, que a ALB pode e deve ser um espaço de fortalecimento também das políticas públicas voltadas para a formação dos mediadores da leitura, propondo cursos de formação para professores e bibliotecários, de forma mais contínua, frequente, planejada coletivamente. Também podemos dizer que, hoje, ela está em condições de realizar pesquisas na área do livro, da leitura, do leitor, sobre o impacto das ações sócio-culturais-educacionais atuais, das condições de funcionamento dos espaços destinados aos livros e aos leitores, sobre projetos de leitura desenvolvidos pelo país através dos pesquisadores ligados à Roda de Pesquisadores da ALB e dos pesquisadores do grupo “Alfabetização, Leitura e Escrita” – ALLE/FE Unicamp, nossos parceiros.

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