A cena continha vários detalhes que lembravam o Natal, ainda que não houvesse renas por ali. Havia um pinheiro enorme, pisca-piscas, quase todos os tipos de bebidas, um cheiro diferente no ar... (que não era causado pelas renas, pois elas realmente não existiam por ali). O que mudava o contexto natalino era que o pinheiro serviu para parar o carro que tinha vindo desgovernado e em alta velocidade na sua direção. Os pisca-piscas, não passavam de sinalizações indicando que aquela estrada estava em obras. As várias bebidas estavam todas armazenadas no corpo do sujeito desmaiado e ensangüentado que jazia abraçado ao volante e, por fim, o cheiro no ar era de gasolina (eu falei que não eram as renas), que saia do tanque perfurado do veículo. O líquido inflamável escorria e deslizava pela terra, chegando cada vez mais perto de um princípio de incêndio, localizado na dianteira do automóvel, iniciado devido ao impacto. Mas havia algo mais. Algo que estava ocorrendo na mente do motorista embriagado. Era ali que estava para ocorrer à verdadeira história de Natal. Quem olhasse de longe para as ferragens retorcidas, não poderia imaginar que naquele momento, um homem estivesse encontrando seu destino de forma tão surreal. Kaio das Pontes era seu nome, um nome que passou bem perto de ser gravado em uma lápide fria, visto que ele poderia ter morrido em decorrência da brutal batida na qual foi algoz e vítima. Se bem que sua situação ainda era delicada, pois tinha quebrado vários ossos, e perdido muito sangue. Mas, o pior é que seu carro poderia explodir a qualquer momento. O lugar estava deserto e desolado, nenhum sinal de vida, nem sequer uma placa indicando algum fast-food de beira de estrada. Em meio ao quase silêncio (ouvia-se apenas alguns ruídos típicos de florestas) uma luz começou a brilhar, próxima ao pára-brisa quebrado (deixando a cena do acidente mais iluminada, porém, ainda silenciosa). A partir do aparecimento da estranha luz, tudo que estava em volta do veículo congelou. As folhas pararam de se mover, o vento parou de soprar e mesmo os ruídos florestais ao seu redor cessaram. A luminosidade tomou forma, e tal qual o conto de Natal: "Os fantasmas de Scrooge", Kaio também passou a receber a visita de três espíritos (anjos ou demônios, dependendo da crença de cada um). Um para mostrar-lhe o passado, outro o presente e um último apresentando seu futuro. O primeiro fantasma apareceu na figura de um cachorro vestido de garçom, e que urinou no rosto do moribundo para acordá-lo. Ao perceber o que aquela criatura peluda tinha feito, Kaio começou a praguejar, mas parou ao levar uma mordida na perna. O cão falava, não com palavras, mas com pensamentos, e fedia, como fedia, exalando um odor insuportável de cachorro molhado. Kaio já não estava mais em seu carro, mas de volta ao seu próprio passado. Ele passou a relembrar de todas as situações que o levaram a beber, as festas, as alegrias e tristezas sempre comemoradas ou esquecidas com álcool. Ao ver a si próprio naquele passado, começou a perceber o quanto se tornara dependente daquele vício maldito. Mas era tão bom o torpor que a bebida lhe trazia. Era como um elixir que lhe curava todos os seus males. Algo que lhe dava coragem e afugentava a dor e as lembranças amargas de sua vida. O cão percorreu com ele a trilha tortuosa dos primeiros passos do alcoólatra, e do grande problema nesta unificação entre homem e bebida, em que nós seres humanos somos péssimos vasilhames, e onde até mesmo os uísques importados viram urina quando estocados em nosso organismo. Pois na grande maioria das vezes que o ser humano resolve bancar o porta-álcool, acaba estragando seu convívio social e até mesmo a sua própria vida, já que de gole em gole tornamos a vida um porre. O cachorro também lhe mostrou, enquanto abanava a cauda, que mesmo sendo um viciado nos prazeres e desprazeres da bebida, Kaio ainda havia conseguido um emprego razoável e uma família com esposa e filhos. Por fim o cão trouxe-lhe de volta ao seu carro acidentado. O homem baixou a cabeça, mas antes que pudesse se recobrar de seu estado deprimente apareceu o segundo fantasma. Ele veio na forma de uma gigantesca lagosta com roupas de bailarina (o balé era o sonho de carreira que sua esposa largou para se dedicar ao marido e aos filhos). Lembrando da mordida do primeiro anjo, Kaio (que adorava lagostas) achou melhor não esboçar qualquer reação diante daquela figura estranha que lhe puxou para fora do carro com um beliscão no braço, levando-o diretamente aos acontecimentos que causaram seu acidente. Ele viu seu dia recomeçar, sempre no bar. Seu corpo mole do trago chegando novamente atrasado ao serviço e desta vez sendo demitido. Ao voltar para casa, reviveu a briga com sua mulher, mais uma entre várias que já se passaram, com um agravante, desta vez houve agressão física com troca de tapas e socos. Ele ouviu novamente o choro de seus pequenos filhos, que por estarem chorando também apanharam. Tudo tão real, tão vergonhoso. Por fim acompanhou sua esposa saindo de casa, levando algumas malas e seus dois filhos, um no colo e outro pela mão. Kaio poderia ter ido atrás dela, ter lhe pedido desculpas pelas besteiras que fez, implorando que ficasse. Ele poderia ter dito que a amava e que amava seus filhos. Mas preferiu encontrar o conforto de uma garrafa. Bebeu toda que encontrou, até ser expulso do bar. Saiu de lá cambaleando e pegou seu carro. Veio pela estrada quase em coma alcoólico até perder a direção e bater contra aquele velho pinheiro. Agora estava ali, relembrando todos os seus erros. Estava novamente estropiado e ensangüentado dentro do carro. Seus olhos mareados de lágrimas. A dor do corpo tornara-se menor que a sofrida por sua alma destruída pela bebida e estraçalhada pelas lembranças. O que viria a seguir? Uma rena vestida de Papai Noel? Então chegou o terceiro fantasma. Uma pomba, nua como qualquer pomba que possa existir, mesmo sendo uma pomba fantasma. Ela mostrou a ele que sua morte traria tristeza para a família, mas também traria alívio. O rosto de sua esposa já não era cheio de medo dos ataques de fúria do marido. Seus filhinhos passaram a dormir melhor, sem acordarem chorando no meio da noite, apavorados com aquele monstro cheirando a cachaça, que gritava enquanto ia quebrando tudo que encontrava pela casa. A pomba também mostrou o que aconteceria se Kaio sobrevivesse. Ela mostrou-lhe vários futuros, em alguns deles ele voltava para a bebida, porém, em outros conseguia superar o vício. A escolha devia ser feita. Viver ou morrer. Lutar ou se deixar vencer. O homem estava totalmente transtornado, seu rosto molhado de lágrimas e sujo de sangue, fedendo a urina de cachorro. A vontade de viver parecia ter se apagado junto com as últimas imagens. Kaio largou o peso do corpo sobre banco e se entregou ao destino. Era tão fácil desistir, abraçar a morte, não ter que enfrentar a vergonha, ou mesmo lutar para mudar a própria vida. Finalmente o fogo alcançou a gasolina. Naquele fatídico momento, o clamor de seu coração por uma nova chance falou mais alto. Apesar de tudo queria viver. Não podia terminar assim, não como um churrasquinho humano, não agora que tinha visto sua vida sobre uma nova ótica, e que poderia mudá-la, por mais difícil que fosse. No entanto, suas preces não pareciam ter surtido qualquer efeito, pois o mundo a sua volta explodiu. A última coisa que viu foi à imagem da pomba voando... Tudo estava escuro e sereno. Após uma verdadeira eternidade de trevas, seus olhos emergiram para uma luz, cegante e intensa. Aos poucos começou a ouvir murmúrios e sons irreconhecíveis. A consciência foi voltando ao corpo. Estava em um hospital. Milagrosamente sobreviveu. A explosão o havia lançado para longe do carro e atraído uma viatura da polícia. Estava consciente de que recebera o melhor presente de todos: A vida, juntamente com uma nova chance de ser feliz. A partir dali só dependeria dele. PRELÚDIO: ao olhar pela janela Kaio pode perceber, ao longe, uma rena vestida de Papai Noel... Nota do Editor: Antonio Brás Constante (abrasc@terra.com.br) é escritor.
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