Para o professor e pesquisador Aníbal Bragança, o trabalho dos editores tem papel central na criação e desenvolvimento de um sistema de comunicação pela palavra escrita.
“Minha vida deve muito aos livros e desde a adolescência tive vontade de trabalhar entre eles, talvez em uma biblioteca”, afirma Aníbal Bragança. O desejo do adolescente não apenas se realizou como tomou proporções talvez não sonhadas: tornou-se livreiro e editor, durante duas décadas, paralelamente à sua formação universitária. “Quando descobri, em um pequeno livro de Robert Escarpit, Sociologia da literatura, uma nova dimensão cultural de nossa atividade, que inclusive era objeto de estudos na universidade, comecei a me dedicar à história e sociologia do livro”, afirma. Deixou as atividades de livreiro para ingressar na carreira docente na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde é professor até hoje, fez mestrado e doutorado na ECA/USP, na área de Comunicação e Cultura, e trabalha, desde então, para fortalecer a área. É pesquisador bolsista de produtividade do CNPq, coordena o Núcleo de Pesquisa Livro e História Editorial no Brasil, na UFF, e o Núcleo de Pesquisa Produção Editorial, da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Além disso criou e coordena o LIHED (Seminário Brasileiro Livro e História Editorial). Na entrevista a seguir, ele fala – com paixão - de seu trabalho voltado para o mundo dos livros e da cultura e, entre outros assuntos, da criação do Centro de Memória Editorial Brasileira. Qual a contribuição do Núcleo de Pesquisa Editorial para o conhecimento da cultura brasileira?
Talvez uma contribuição relevante tenha sido a criação e realização do Seminário Brasileiro Livro e História Editorial, que teve sua primeira edição em 2004, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e a segunda, em 2009, na Fundação Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, no Rio, e em Niterói, na UFF, reunindo pesquisadores brasileiros e estrangeiros para discutir questões relacionadas com o livro e a cultura letrada. Outra poderá ser o trabalho que estamos desenvolvendo, a partir da primeira doação, com apoio da Petrobras e da Faperj, para a criação do Centro de Memória Editorial Brasileira, de preservação, organização, classificação e disponibilização do acervo documental histórico (1854-1954) e bibliográfico da Francisco Alves, que foi a primeira grande livraria-editora brasileira. Outro projeto em andamento é a organização de um acervo de periódicos da área, inclusive de alguns jornais, como o Correio do Livro, que já desapareceram e que continuam sendo fonte importante para os pesquisadores. Isso além das pesquisas e os artigos que temos publicado em revistas acadêmicas e livros. Qual o papel do editor brasileiro na formação da cultura brasileira? Ele cumpre esse papel? Os editores são os eixos do processo de comunicação entre autores e leitores, com seu poder de transformar originais em livros, para o que acionam inúmeras colaborações, das quais podemos destacar os designers gráficos, impressores e livreiros, mas não só. A função do editor de livros é fundamental para a construção de uma cultura letrada, chamada por Marshall McLuhan, Galáxia de Gutenberg, que regeu o mundo ocidental durante 500 anos (de 1450-1950). No Brasil, desde os pioneiros António Isidoro da Fonseca e frei José Mariano da Conceição Veloso, passando pelos Garnier, Francisco Alves, Quaresma, Melhoramentos, Monteiro Lobato, Octalles Marcondes Ferreira, José Olympio, Enio Silveira, José de Souza Martins, Jorge Zahar, Alfredo Machado, Caio Graco Prado, Luiz Schwarcz, dentre muitos outros, o trabalho dos editores tem papel central na criação e desenvolvimento de um sistema de comunicação pela palavra escrita, que é a base do nosso sistema de ensino - do grupo escolar à universidade -, da criação literária e científica, das bibliotecas, da imprensa periódica e de todo o aparato de cultura que envolve as práticas políticas, jurídicas, econômicas, sociais e artísticas contemporâneas. Claro é, também, que esses trabalhos são reflexos ou produtos dessa cultura, com a qual interagem, em um ambiente complexo em que as heranças da oralidade e as dinâmicas do mundo audiovisual e digital estão presentes, cada vez mais. Que mudanças houve na função de editor na história do livro no Brasil? Desde a criação da Impressão Régia no Rio de Janeiro, em 1808, os desafios enfrentados pelos editores, quer na sua relação com autores e originais, quer na busca de livrarias e leitores, quer na busca da liberdade, sempre foram difíceis. Enfrentar censura, analfabetismo, exclusão social, limitada capacidade de compra de leitores, deficiente rede pública e privada de bibliotecas, além de períodos em que o reequipamento gráfico e mesmo bom papel foram barreiras a vencer, tudo faz da trajetória dos editores brasileiros uma história de superações e conquistas. Mas os desafios são permanentes e certamente um deles, conseguir uma rede de vendas através de livrarias com capilaridade para atender ao leitor onde ele poderá ser conquistado, talvez esteja mais distante hoje que antes, o que terá sido uma grande perda, pois os livreiros podem ser mediadores importantes na conquista de leitores nas comunidades onde atuam, tarefa dificilmente desempenhada quer pelas livrarias virtuais quer pelas grandes redes. Como o senhor avalia o mercado editorial brasileiro? Podemos afirmar que o Brasil tem pequena parcela de sua população com bom poder aquisitivo, que cada vez mais busca outros meios de informação, lazer e cultura que não o livro impresso; outra parte que gostaria de ter acesso a livros e leituras, mas não tem recursos econômicos suficientes nem condições de vida – tempo e ambiente – que facilitem esse acesso; e a grande maioria que está praticamente excluída do desfrute de bens materiais e simbólicos. Assim, há que investir especialmente em obras de grande refinamento gráfico-editorial para a primeira parcela que gosta de sofisticação e exclusividade; redução de preços nas edições e luta por mais investimento público para atualização de acervos de bibliotecas para a segunda parte desse universo; e uma busca constante por uma sociedade menos injusta, por mais acesso à educação de qualidade e melhor distribuição de renda para a parcela maior da população brasileira, que permita, dentre outros benefícios, o seu ingresso no mercado. Aliás, não devemos esquecer que esse universo social já é, em grande parte, a clientela dos programas públicos de distribuição de livros escolares, que são uma variável muito significativa do mercado brasileiro, mas que infelizmente não se mantém efetivo após os anos de curta escolaridade. Certamente a ampliação do mercado, pela melhor distribuição de renda e elevação da qualidade de vida, oferece um potencial enorme para desenvolvimento de nossa indústria editorial. E o papel da mídia? A mídia, entendida como os jornais impressos, o rádio e a televisão, tem desafios próprios, que são também difíceis, pois enfrentam desenvolvimento de tecnologias digitais, virtuais e informáticas que vão criando uma nova configuração cultural que as desloca do centro do processo cultural que ocuparam durante décadas. Hoje a convergência tecnológica aponta para os computadores e os celulares como mídias com maior potencial de crescimento e isso coloca um grande desafio também para a mídia “tradicional”. Podemos afirmar que os jornais tiveram um papel muito importante no desenvolvimento das práticas de leitura, pelos espaços abertos para escritores e críticos em seus “segundos cadernos”, mas isto se tem reduzido acentuadamente. O rádio e a televisão pouco contribuíram para esse desenvolvimento, mas o potencial desses meios ainda é muito significativo para a valorização das práticas de leitura e escritura, pois sua audiência é o “grande público”, que não freqüenta as livrarias, e quando abrem espaços para o livro sempre chamam a atenção da sociedade. O que tem a dizer sobre a qualidade dos acervos brasileiros no que se refere à memória editorial? O Lihed está desenvolvendo o projeto de criação de um Centro de Memória Editorial Brasileira, visando reunir documentação editorial especialmente do século XIX e primeira metade do XX. Em geral, essa documentação não é preservada, o que acarreta grandes lacunas na construção da história editorial e danos irreparáveis à memória da ‘gente do livro’, especialmente para se conhecer sua contribuição para a cultura do país. Algumas editoras como a Melhoramentos, a Nacional, a Vozes, a FTD, José Olympio, além da Imprensa Nacional, têm buscado preservar sua memória. Temos visto também iniciativas voltadas para criação e organização de arquivos para preservação de documentos relativos à vida literária, como o Museu da Literatura da Casa de Rui Barbosa, da UFMG e do Instituto Moreira Sales. Temos também o trabalho das instituições primordiais, como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional, que preservam documentação muito importante, especialmente do século XIX, mas tudo isso é ainda insuficiente e disperso. Há necessidade de um centro de memória editorial ativo, moderno e dinâmico, e para isso a contribuição dos agentes do mundo do livro é indispensável. Precisamos criar uma cultura da preservação documental, que entre nós só existe pontualmente. Como avalia o fato de os livros mais vendidos (conforme a lista publicada semanalmente pela imprensa) serem de autores estrangeiros? Felizmente aparecem também autores brasileiros, mas a preponderância de autores estrangeiros expressa a presença cada vez maior de uma cultura globalizada, do poder crescente de grupos editoriais internacionais no nosso mercado, além de ser também um reflexo da cultura contemporânea, que valoriza obras voltadas para acontecimentos e pessoas que se tornam ‘assuntos do momento’ e, por isso, com grande potencial para se tornarem best-sellers, que são o eldorado ($$$) de grande parte dos editores, independente de seu valor e da vida efêmera. Qual foi o incentivo para o seu interesse em dedicar-se à pesquisa na área do livro? Minha vida deve muito aos livros e desde a adolescência tive vontade de trabalhar entre eles, talvez em uma biblioteca. Acabei me tornando livreiro e editor, durante duas décadas, paralelamente à minha formação universitária. Quando descobri, em um pequeno livro de Robert Escarpit, Sociologia da literatura, uma nova dimensão cultural de nossa atividade, que inclusive era objeto de estudos na universidade, comecei a me dedicar à história e sociologia do livro e acabei deixando as atividades de livreiro para ingressar na carreira docente na UFF, tendo feito meu mestrado e doutorado na ECA/USP, na área de Comunicação e Cultura, trabalhando desde então para fortalecer essa área multidisciplinar de pesquisas no país. Como avalia o papel da escola atualmente na formação de leitores? Bons professores existem e muitos, como eu, tiveram a sorte de os encontrar na vida, mas as pesquisas indicam que a contribuição da escola para a formação de leitores é quase nula, com raras exceções. Certamente isso em parte é reflexo da desqualificação da carreira docente, em especial, no ensino elementar e secundário. O que torna ainda mais importante o cuidado da família, mãe e pai, na formação do hábito de leitura nos filhos, quer pela contação de histórias em momentos de aconchego, quer pela visita às livrarias e bibliotecas, desde os filhos pequenos, quer pelo próprio exemplo de amor ao livro. Mas isso, certamente o mais importante, não dispensa investimento na qualificação docente e na melhoria das suas condições de trabalho dos professores. De que modo a implantação da imprensa no Brasil interferiu na formação da cultura brasileira? Ou não foi relevante? A implantação da tipografia no Brasil se deu tardiamente e era uma grande aspiração na Colônia, pois até então os livros que aqui circulavam eram feitos em Portugal e na França, especialmente. E os autores brasileiros dependiam dos editores europeus para publicarem seus livros, além de autorização dos poderes censórios, o que tornava tudo muito difícil e demorado. O ato de criação da Impressão Régia pelo Príncipe Regente D. João, através de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, foi vista pelo cronista conhecido como Padre Perereca (1825) como se “o refulgente sol viesse vivificar este país, (...) dissipando as trevas da ignorância, cujas negras e medonhas nuvens cobriam todo o Brasil e interceptavam as luzes da sabedoria”. Foi um marco muito relevante para formação cultural do país. Como as novas tecnologias influenciam na formação - ou não - de leitores? Devemos distinguir as práticas de leitura. Hoje é quase impossível, nas cidades, eximir-se de alguma prática leitora. Entretanto, são diferentes as práticas de leitura de livros das de letreiros de ônibus e de textos curtos na Internet. As novas tecnologias abriram oportunidades para práticas novas de escritura e de leitura, que nem sempre levam à leitura de livros, ao contrário. A informação disponível na rede mundial é tão fácil de ser acessada e tão ‘pronta para usar’, que substitui, com vantagem de tempo e de esforço, a leitura de livros, embora com prejuízos, nem sempre considerados, como a superficialidade. A leitura de livros será sempre fundamental na busca do aprofundamento e da distinção, mas a maioria se satisfaz com menos. Acredita que o Brasil ainda possa ser um país de leitores, com índices de leitura comparáveis aos dos países da Europa?
O Brasil tem certos nichos, sociais e geográficos, que tem práticas de leitura similares aos dos centros avançados da Europa. Mas temos vazios enormes, onde a leitura é uma prática quase ignorada. Como em outros setores, o Brasil é muito desigual. Temos pessoas como José Mindlin, cuja biblioteca é das mais admiráveis do mundo, e escassez absoluta de livros e leituras nos lares da maioria da população. Poderemos sim ser um país de leitores, embora talvez já não de livros, se houver profundas mudanças nas políticas públicas e na gestão dos recursos do Estado. Enquanto o Brasil for o paraíso da especulação financeira, à custa do Tesouro e da sociedade, não sobrarão recursos no Estado para os investimentos necessários para operar essa transformação. Para isso será necessária vontade política e mudanças na estrutura do bloco do poder. Cite alguns de seus livros publicados. Temos em processo de publicação dois livros: Impresso no Brasil. 200 anos de livros brasileiros, organizado em parceria com Márcia Abreu, que está sendo editado pela Edunesp, e será certamente um marco na nova história do livro e da leitura no Brasil, e Francisco Alves na história editorial brasileira, que deverá ser publicado pela Edusp. Além destes podemos citar a obra Livraria Ideal, do Cordel à Bibliofilia, 2ª. edição, o volume 5 da coleção Memória Editorial da Edusp; Com-Arte (2009), e A profissão do poeta & Carta aos livreiros do Brasil, sobre a obra de Geir Campos, organizado com Maria Lizete dos Santos, publicado em 2001, pela Imprensa Oficial (RJ) e Comunicação, acontecimento e memória, organizado com Sonia Virgínia Moreira, e publicado em São Paulo pela Intercom, em 2005.
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