(Romance)
Capítulo X - Gertrude não resiste à borduna de Caetano (*) Gertrude cedeu ao cerco obstinado de Caetano. Ela o vira, nas vezes sem conta em que ele dormira no quarto vizinho, levantar-se de madrugada, seguir o corredor, a sala, para mijar. Não se insinuara no quarto de Gertrude, esgueirara-se nas paredes, simulando sono, vendo-a deitada. Comparou-o a um vietcongue astuto. Nunca segurou uma garrucha, mas lera todos os manuais de guerra. Urdiram-se como casal um espiando o outro, nas proximidades dos quartos. Houve lençóis cedidos, travesseiros, toalhas quentes no banheiro com o cheiro dos dois após o uso alternado. No outeiro do Carmo, noite sem lua, o mato rasteiro acolheu o casal como se fosse um vegetal a mais. Encostados na parede, sentados na relva fina, ocultos. Gertrude alisou os cabelos do caeté; com a outra mão, arrancou com unhas e dedos a grama fina. A fantasia levou-a à remota paisagem de Olinda, quando segurou precisa o caralho duro de Caetano. No mesmo lugar onde se esfregara com Maújo. Convenceu-se, ela, da sensualidade da terra. Caetano gemeu, vingando-se do mudo gemido que soltara durante todo o ano, com a cabeça no travesseiro cedido por ela. Roçando os pentelhos coruscantes do macho, enterrou na areia a autocrítica que exigira de Maújo. Podia até aludir a rumbas, a Maújo escondido nos cabelos de Chica, no escuro do Estrela; sem embaraço. Não queria falar do aborto. O feto fora mutilado, sentia-se purgada. Com a suspeita de que sem Caetano, talvez estivesse ralando nas ladeiras, entregou-se desesperada com medo de perder outro parelho. Esperara um ano, ele. Ela o segurou como se ele tivesse recuado do propósito de sujeitá-la. Gertrude fazia uso de uma dialética doméstica, de uso conjugal. Temia que ele viesse a sofrer de paixão sob recuo. - Considera-se curada? - Agora só me preocupo com você, com sua disposição de me aturar, se assim posso falar. - Fala como se estivesse de ressaca, como se sofresse de alguma doença física ou de cabeça. Assim você me assusta. - Fiz você esperar muito tempo. Considero-me recuperada. Agora tenho medo de que você tenha perdido o desejo de posse que nunca escondeu de mim... Nem de ninguém. - Tive esperança até mesmo quando você estava acompanhada. Desconfiava que sua relação com Maújo não tinha futuro. Ele é passional e isso sempre põe tudo a perder. - Maújo significou uma chance que eu vi de me recuperar da rotina massacrante que foi meu primeiro casamento. Moço e com muita alegria, mas infantil. - Chica também tem muita energia. Os dois sabem dividir os sentimentos. - Sinto alívio. Tanto ele quanto eu estamos reacomodando nossas vidas. - É alívio da síntese. - Isso mesmo! - Desçamos ao Maconhão e brindemos. No céu as estrelas são as mesmas da Conchichina. Em conluio com a parda luz do farol e da rala iluminação dos postes, os astros são cúmplices de todos os atos; até da reza sombria do arcebispo numa gruta do seminário. Assim, o garçom do Maconhão, o mesmo que servira Maújo e Chica, acoitou sem estranheza o conúbio entre Caetano e Gertrude. Era parte da trama, o garçom. Vira Maújo com Chica, julgara ser uma incursão extraconjugal, tão comum em seu convívio de homem do povo. - O que bebemos? – Gertrude experimentou a deliciosa quentura de ser dependente de Caetano. - Dois daiquiris perfumados, com três folhas de hortelã cada um. Gelo e limão. O garçom trouxe as doses e fichas para a radiola. Os dois assentiram com o bulício do enredo. Um meteoro riscou o céu, a luz clareou a faixa de mar na frente do Maconhão. Barcos e canoas, alumiados. Um pescador, deitado no banco sobre o leme, cruzara as pernas. Sentados ao lado da janela, Gertrude e Caetano viram a luz. Para os dois, a vadiação solitária do homem no bote urdia o trabalho no começo da manhã. Ao lado do pescador, no reduzido convés, uma garrafa de pinga rolava conforme o balanço das águas. Um prato com um pirão mexido e espinhas de peixe. O homem se deitara sob o efeito da cachaça. Não sonhava. Os dois no bar foram tomados por repentina tristeza; não de agouros nem de palpite ruim, mas da certeza de que no dia seguinte a cidade não seria poupada da indolência. Nas casas, cada morador era um morto insepulto. Gertrude e Caetano, mudos, suspeitando da impossibilidade do exercício da luta de classes em Olinda. - Por que não tomamos uma pinga de verdade? A pinga foi bebida com cólera. - Nada nos proíbe de tomar uma pinga. Antes se dizia para se ter cuidado com a gripe; a gripe vinha e logo passava. Hoje dizemos para se ter cuidado com a depressão; a depressão vem com jeito de que vai ficar. Se Caetano não estivesse de seu lado, Gertrude seria capaz de renunciar às cogitações de ver o povo convulso. Sabia disso. A tediosa rotina escavava suas forças, era um armistício. A fuga de Xisto, desagravada pela censura a Maújo, dera lugar ao desânimo. Pingas nos copos pequenos, de fundo grosso, beira arriada. No mármore manchado, um pires com duas azeitonas pretas para adornar o falso requinte da louça ordinária. Bebeu com raiva, ele; ela, de gole em gole. A burla não fazia parte de seu código de honra. Zombando das sombras, falando na frente do garçom, olhavam-no como um futuro militante. Os dois se acudiam no desvario. Gertrude não defecara no portão do general aposentado. Queria saber de Caetano sua reação ao propósito. - Podemos foder no seu jardim e deixar nossas fezes em agradecimento. O que ela queria ouvir. Ele estava bêbado. O pescador no barco dormira sem preocupação com meteoritos. Um rato saíra do porão, comia o resto de pirão no prato de ágata. O ruído interrompeu o silêncio das águas paradas. Gertrude e Caetano deliraram por mais duas horas; dormiram com cabeça e ombros juntos, apoiando-se. A radiola a meio tom serviu de fundo musical a seus sonhos. De manhã, o garçom os acordou com toques educados nos ombros. Sobressaltados, pensaram ter sido surpreendidos pelo general de pijama. (*) Do romance - Conspiração no Guadalupe (Continua na próxima semana) Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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