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Contos
15/08/2009 - 13h09
Conspiração no Guadalupe IX
Marco Albertim
 
(Romance)

Capítulo IX - As beatas querem a cassação do registro de Chica (*)

Passou-se o ano, a cidade não reagiu à indolência. A burla dos sinos dava a impressão de que as ruas seriam ocupadas por multidões. De volta, após as missas, os moradores se enfiavam nas suas casas, acreditando que a mansidão era uma dádiva do santo beneficiário de suas orações. Tinham pesadelos, atribuídos todos às preocupações com filhos e filhas drogados, influenciados pela rotina promíscua dos prostíbulos dos Milagres; pesadelos de mortes, visto que temiam a morte que viria nos confins do século, quando a vida seria um ato vegetativo cujo fim não seria percebido pelos sentidos.

Novembro trouxe o Finados. As homenagens ao dia se deram em cerimônias de suplício voluntário. O 15 de Novembro transcorreu imperceptível à cidadania sedada de cada morador.

Na procissão dos Passos os sinos da Sé repicaram anunciando a queda de Cristo em frente à capela. O andor parou. Quatro padioleiros de túnica roxa depuseram o andor sobre os quatro pés de madeira. O sacerdote, na frente, louvou o sofrimento na via-crúcis, o coroinha balançou o incensório. Velhas de branco, com véu escuro na cabeça, diziam rezas de expiação. Os padioleiros aproveitaram para, rápidos, beber uma pinga laxante num boteco oculto pelo fícus de tronco grosso. Beberam, voltaram para reerguer o andor. O padre salpicou-os com água benta. As velhas não perceberam, mas repararam o bulício de curiosos na quitanda vizinha ao boteco. Turistas de cabelos afogueados, examinando com interesse as surubas de terracota, ao lado de miniaturas de igrejas seculares, expostas à venda por Chica. Olharam-se indecisas, as velhas, pulando sílabas, aleijando a reza. “Pouca vergonha... Heresia... Descrença... Deboche com a Igreja.” Os comentários resultaram na combinação para pôr fim ao comércio de estatuetas licenciosas junto a casas de oração.

Em comitiva, beatas de cabelos trançados foram à prefeitura; exigiram do secretário o fechamento da quitanda de Chica, a cassação do registro. “É conhecida como Chica, de Tracunhaém, tem parte com o tinhoso na cerâmica luxuriosa. Pouca vergonha...” A demanda foi deixada no birô do secretário, uma petição com cinco dezenas de assinaturas arrastadas, sinistras. Chica foi chamada ao gabinete; assustou-se no começo. No Bonfim, onde combinaram sua cassação, debulhou com os olhos inquietos, a alma se aliviando:

Pelas gretas das janelas
pelas frestas das esteiras
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência

- Não tenho nada contra a Igreja. Minha cerâmica é livre e ninguém é forçado a olhar para minha quitanda.
- E a formação católica do povo? A senhora não está respeitando a crença.
- Por isso sou obrigada a fazer estátuas de mulheres ajoelhadas, recebendo a hóstia!? Elas estão censurando o meu ofício!
- São mulheres de família, gozam da estima do arcebispo. A prefeitura não pode cruzar os braços ou virar as costas para elas.
- O senhor não está apenas fechando um boxe. Está proibindo o exercício de uma forma de arte. Tem noção do que isso significa?
- Está falando como uma subversiva. Sou forçado a lhe tirar a concessão.

Levantou-se sem dizer mais nada, Chica. Entrou com pedido de liminar no Fórum. O juiz deu ganho de causa. A procuradoria da prefeitura entrou com recurso contrário no Tribunal. Em votação apertada, os desembargadores reconheceram o direito de exercer o ofício; confinado em recinto de portas fechadas, sem acesso à luz do sol, da lua, de fluorescentes nos postes de iluminação. Ela substituiu as portas de vidro da quitanda por outras, entalhadas; na madeira, esculpiu sereias de longos cabelos cobrindo os corpos; no rodapé, igrejas à margem de ruas calçadas. Na marquise, pendurou uma talha em duas correntes, com as mesmas gravuras. Uma porta da quitanda foi mantida aberta, com luz interna forte, um ventilador ligado todo o tempo.

Nada comentou na redação, Maújo. Zadock Costa Neves, repórter, objeto de sua repulsa, fora avisado pelo próprio secretário. “A prefeitura está empenhada em erradicar da Sé, uma forma de artesanato ofensiva às artes sacras da cidade”, dissera. Zadock ouviu ainda as beatas, instigando-as; providenciou fotos das surubas, fez meia dúzia de perguntas a Chica. Destacou na matéria os argumentos do secretário, as queixas das velhas carolas; por último, uma frase de Chica com cinco palavras: “Não vou interromper minha arte.” O propósito era manter aceso o confronto da ceramista com a prefeitura. No título, futricou sem escrúpulos; Artesã desafia Igreja e prefeitura. Maújo copidescou o texto, desejou que um câncer roesse os intestinos de Zadock Costa Neves, tentou atenuar o efeito do veneno nas últimas linhas. A editora ordenou a manutenção literal do que fora escrito. Com a decisão do Tribunal, ambos, Zadock e a editora, sapecaram: Tribunal impõe limites a estatuetas dissolutas.

A vergonha das beatas e o esforço do secretário chamaram mais a atenção para as esculturas. O registro da quitanda foi mantido e Chica, entrevistada por repórteres do Rio de Janeiro, de São Paulo. Houve incremento nas encomendas. Turistas estrangeiros, escandinavos, não pechincharam nos preços.
- Comemos uma moqueca?! – Repetia, ela, feliz, para Maújo.
- O secretário não vai sossegar enquanto não cassar o seu registro. A cassação tá na moda. Vai lhe dar mais autoridade, fortalecer sua candidatura.

Maújo tramou uma pichação noturna, tornando viva com letras vermelhas a queixa contra o ranço de censura instalado na prefeitura. Pichar no prédio da administração, na lateral azul-cinzento, a cor do paletó do secretário. A rua 15 de Novembro é percurso de dezenas de carros. Assessores e chefes sentir-se-ão ofendidos, para justificar os salários, seguir o secretário em seu agravado brio. Os moradores insossos há muito tinham perdido o interesse na administração; podiam conjeturar com preguiça, a distância de suas casas ao gabinete do secretário; morando ali pertinho, não eram consultados quando o aumento do IPTU era cogitado; queriam melhoras à sombra de seus oratórios. Os estudantes não tinham olhos para outra cor que não a da farda de suas escolas. Os bêbados leriam a pichação com olhos quase fechados; no resíduo de consciência que lhes restasse, dariam razão à autoridade do secretário, para mostrar que, inda embriagados, portavam-se com civilidade.

Reduziu-se à ponderação miúda a chance de agravar o secretário e neutralizar as beatas; comparada à outra, de tornar Chica único alvo da reação combinada entre o secretário, o arcebispo e os polícias da Veraneio. Chica seria interrogada. Saberiam que Maújo era seu amante.
- Não podem me prender. Abro uma loja na oficina. Fica mais distante, mas logo chamo a atenção com as mesmas estatuetas. Com o tempo, serei visitada pelos turistas.
- E a sua tia?
- Ela faz o que eu peço. Confia nos santos que me protegem.

A idéia foi discutida pelos três únicos sobreviventes do Partido em Olinda. Maújo a defendeu. O secretário, conforme dizia, era uma ameaça às artes, ao direito de subir e descer as ladeiras.
- O secretário é fascista. – disse Gertrude – Mas sua proposta é passional.
- Não leva em conta a relação de forças – emendou Caetano.
- Pichar de madrugada às escondidas já é considerar a relação de forças. Se fôssemos maioria, eu estaria propondo invasão ao gabinete do secretário.

Argumentou imaginando Chica à frente de um pelotão de capoeiristas seguido de babalorixás e pretas de terreiros, invadindo o grosso portal da prefeitura, subindo no madeirame da escadaria, rangendo os degraus, em gritos.
- Poria em risco a nossa segurança. Chica, a única atingida por uma medida de força do secretário, tem relação com você que é membro do Partido. Depois de você, nós seríamos descobertos. Seria o fim. Podemos até pichar, mas não sobre o caso particular de Chica.

Gertrude, fria, fitando Maújo como um camarada apenas; olhando na fronte do ex-parelho, vendo-o passional, em defesa da amante. Caetano, sossegado, seguindo os aconselhamentos dela; certo de que, inda que distinguindo o passionalismo na proposta de Maújo, recuperara-se da fraqueza toda vez que falava ou se dirigia a ele.

Previra, Maújo, a reação dos dois; insistiu porque, com o desdobramento do episódio, Chica seria recrutada. Não sugerira até então por temer um transe hipnótico no meio da reunião, na mesa de Gertrude, sob o olhar inquiridor de Marx na parede.

(*) Do romance - Conspiração no Guadalupe

(Continua na próxima semana)


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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