(Romance)
Capítulo VIII - Um casal em gozo moderado de direitos civis (*) No carnaval, reencontraram com Gertrude e Caetano, na ladeira de São Francisco. A multidão, subindo e descendo, não parava para tomar fôlego nas calçadas. Aqui e ali se via um casal encostado a um muro, bebendo em cantis, segurando uma guimba de baseado. Os quatro cruzaram-se a dois metros um casal de outro. Maújo, àquela altura, julgava Gertrude e Caetano um casal; por sua comodidade com Chica, pela esperança de que a ex-parelha não ficasse deserdada de todo. Seria capaz de sentar na mesma mesa com os quatro juntos, cada par apostando na felicidade do outro; com ou sem o efeito de daiquiris. Chamou a atenção o contraste entre os trajos deles. Maújo, sujo, o rosto com marcas do batom de Chica; a pintura deixando-a com o rosto de um diabinho. Tudo instigando a etiqueta bolchevique. Gertrude e Caetano, subindo, conversando como se fossem ao concerto de uma sinfônica. Ele, com calça jeans, camisa da mesma cor. Ela, com um vestido de comprimento abaixo dos joelhos, quatro dedos abaixo. Um resíduo de remorso desajeitou Maújo, envergonhou-o; pensou, sem dizer, que os dois iam para a missa na Igreja das Graças. Olhou para trás, viu-os sentados na baixa amurada do seminário. Gertrude com um saco de pipocas, Caetano com um molho de roletes de cana; distraídos, vivamente interessados um na conversa do outro. Por todos os exus! Quanta abstração à devassidão nas ladeiras! O cumprimento de Maújo fora desengonçado. Chica, generosa, arremessara votos de felicidades no aceno de mãos. Gertrude e Caetano, módicos acenos, examinando cada pedra dos paralelepípedos, dois cidadãos no gozo moderado de seus direitos. Maújo encontrou Chica urdindo a Inconfidência nos casarões, nas esquinas. Sentia vertigem, ela, “... liberdade, essa palavra – que o sonho humano alimenta – que não há ninguém que explica – e ninguém que não entenda...” mesmo relendo pela décima vez. Maújo disse que a parelha tinha o sangue em brotação. Ela o abraçou. Em frente à Praça da Preguiça, ele olhara para o cruzeiro de Santo Antônio do Carmo. Sonhou com a praça restaurada, transformada em palco para encenações de teatro. O largo sombrio, apodrecido, também se curvara à autoridade dos homens do Distrito Policial. Em cima, sentados no degrau mais alto da escadaria, Gertrude e Caetano tiravam proveito do triste camarote. A chuva deixara o paredão da escadaria úmido, escorrendo água entre o lodo. Sem pipocas nem roletes, avistaram Maújo. Virou-se para o cruzeiro, ele, sem avistar o casal. Não viu as duas sombras porque estava no claro, e o casal no escuro. Ainda que houvesse um facho de luz, a fina silhueta de Gertrude não seria percebida. Caetano, com o tronco índio de caeté, confundia-se com o cinza-escuro das paredes. Nos quatro dias, flertaram-se discretos, com propósitos. A multidão se recolhera, eles subiram, ocultos, a penumbra do Carmo. Ela resistira na semana pré-, no sábado de Zé Pereira; no domingo, quando o carnaval era um festim estável; na segunda-feira, quando as fêmeas aceitam o sêmen como um donativo; e na terça da carneação pagã. Resistira porque seria fácil se entregar cumprindo a regra; sem reservas nem enredos. - Estou vendo Maújo. Está sozinho. Chutando latas, parece um folião perdido. – Achou conveniente falar, Gertrude. Calada, ficaria à mercê do juízo que Caetano faria de si, dela; ficou serena, não afrouxou a voz nem embebeu os olhos. Quando Maújo sumiu no contorno da praça, voltou o rosto para Caetano, olhou-o nos olhos, curvou-se, pôs a cabeça no ombro dele. Depois do aborto ele assistira Gertrude todos os dias. Dormia em sua casa, quartos separados. Comprava o pão, torcia o pano para escorrer o café. Almoçavam juntos, os filhos quietos, sem estranheza a mudanças repentinas. No domingo ele comprou máscaras para os meninos. Saíram todos os dias, acompanharam blocos sem pulos nem danças. Tomou algumas cervejas, ele; pedia a conta rápido com medo que a libido afrouxasse o recato. Ela, encolhendo as palavras, nenhum gole tomou. Bebera a valer com Maújo, noutros frevos. Queriam ir para casa, mas o Guadalupe estava longe. Subiam para o Outeiro do Carmo, mijavam, esfregavam-se. No degrau onde Caetano lhe fazia o cerco, brigara com Maújo; agredira-o com uma perna de plástico de uma boneca abandonada, jogou o objeto abaixo, chamou a atenção do guarda municipal. Quisera intervir, o guarda; recuou por se tratar de litígio de casal. Assustada com a própria fúria, esvaziou a raiva. Maújo, perplexo. Ela chorou convulsiva, atirou-se nos braços dele, beijou-o como um canibal. Mudos, desceram correndo, atravessando a avenida sem atenção ao trânsito. “Porra!” – gritou um motorista. No quarto, um tirou a roupa do outro... Agora o aposento tem outra decoração. Chica, deitada de costas na otomana, não parou a leitura quando ele a beijou nas costas, nos pêlos invisíveis. Sentiu um cheiro de lavanda, lavanda com gosto de terra. A memória o conduziu ao quintal da avó, com quem se criara. Romãs, alfenins e bolo de mandioca. Maújo abriu a janela. O frescor da maresia salgou o banquete da memória. (*) Do romance - Conspiração no Guadalupe (Continua na próxima semana) Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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