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Contos
01/08/2009 - 07h42
Conspiração no Guadalupe VII
Marco Albertim
 
(Romance)

Capítulo VII - O chocalho eletrônico da Globo (*)

Sabiam que, depois do carnaval, uma angústia percorreria as ruas desertas. O ar denso era monitorado pelo Distrito Policial. Rondas, suspeitas de velhos moradores, oficiais de pijama sentados em espreguiçadeiras, imaginando um sussurro subversivo na esquina próxima.

Maújo e Chica, na quarta-feira de Cinzas, não se entregaram a mortificações; pararam de pular quando o Bacalhau do Batata tocou a última nota. Sem a orquestra, sentiram-se deserdados. Acudiu-os a lembrança de terem feito juras desconhecidas do Distrito Policial, dos oficiais de pijama. Os mais velhos, saídos de suas casas fechadas nos quatro dias, subiam para a missa da penitência na Sé. Eles desceram a ladeira, cada um com um par de tênis estropiado, a camisa de meia colada no corpo, os cabelos revirados.

Livraram-se da sujeira no chuveiro; enquanto a água escorria, urdiram outros festins licenciosos. Deitaram na posição de costume, nus; dormiram como dois peões extenuados. Quando o sol entrou pela janela, lembraram dos restos de energia. Coitaram soltando urros na garganta rouca.

Chica voltou à rotina da oficina. Maújo voltou à tediosa revisão do jornal.
- Maújo, as páginas estão prontas. Só falta o copidesque. Lave o rosto, vá à bacia sanitária e deixe tudo que trouxe do carnaval. Tome um café quente e não deixe passar erros. É na quinta-feira, depois das Cinzas, que se vê a competência da redação.
- Minha cabeça está cheia de notas de frevo. Mas não vou confundir com as letras. O mais provável é que eu leia em ritmo de frevo-canção, com prazer. Quanto ao sanitário, vai ser o de todo dia.
- Não está doente? O que fez no carnaval?
- Renovei meu compromisso com o jornal. Pensei em traição quando uma moça de 21 anos me ensinou a dançar maracatu. Mas não quis prejudicar meu futuro brilhante nas páginas do jornal. Deixei a moça solitária.
- Você faz trapaças com as palavras. Não duvido que tenha se vestido de Pierrot, um inocente Pierrot convidando mocinhas para fotografar o mar na frente da pousada.
- É uma sugestão. Nas chuvas de março posso fotografar a natureza morta.
- Uma moça estuprada é natureza morta.
- As ninfas não se deixam estuprar, entregam-se. Só quando envelhecem desejam o estupro, mas geralmente viram atrizes decadentes. – Você tem tudo para ser uma atriz decadente, quis dizer Maújo.
- O que dizer de...

A editora fez um trejeito de atriz em cena dramática. Maújo, revisando os originais com uma esferográfica, interrompeu o trabalho; interrompeu para ver o remate. Suspeitou que fora visto com Chica, e agora, a editora fazia a caricatura de sua parelha.
- Mercedes Cunha Borges, com quem você tomou Champagne no Savoy?
- Não sei de Mercedes. Entrevistei-a uma vez, só isso.

Alguém gritou do fundo da sala, mais alto que a vozearia da redação:
- Fugiu com o fantasma da ópera!

As risadas intimidaram a editora. Não era de falar muito, ela, vivia só, num apartamento deixado pelo falecido marido, há dois, três anos. Jurava às amigas que, de então para cá, não tivera ninguém. No carnaval encontrara com um ex-namorado. Combinaram que, a partir do sábado, seriam amantes até a quarta-feira; se desse certo, a relação se manteria por mais tempo, até algum lundu os separar, inda que resultante de uma retardatária tensão pré-menstrual. Fartou-se nos quatro dias. Feliz, voltou à redação provocando os outros com arroubos de cama. Distinguiu em Maújo, seu quieto copidesque, o objeto adequado às suas inquietações. Não teve coragem para dizer, apesar da vontade, que passara um carnaval feliz; brincara na clandestinidade, em bares refugados de Casa Forte, em fundos de sobrados de Apipucos. Passasse um bloco, misturavam-se à multidão, ela e o ex-.

A edição não demorou a fechar. Podia ter demorado, caso a editora tivesse passado o carnaval em retiro, como fizera noutros anos. Teve sorte com um folião já conhecido, sem uso de coqueteria; sorte na cama, veloz no fechamento das páginas. Sorte para Maújo que, ressacado, a aturou com o mesmo humor de quando dissera finezas no ouvido de Chica.

Ele foi à casa da tia de Chica, também para beber os ungüentos de cozinha preparados pela velha. Chica descera para a pousada.

A ladeira da Misericórdia, de cima a baixo, era um cenário de fim de guerra. O casario fechado, o fedor do lixo não recolhido, dos esgotos abertos. Chovera o bastante para escorrer no calçamento o lixo miúdo. Depois, o calorão incidiu nas bocas de esgoto, carregando a morrinha das ruas.

Maújo chutava latas vazias, de cerveja, para chamar a atenção. Herdara o costume com Gertrude, quando voltavam do Estrela. Provocavam coronéis em fim de carreira. De pijama, os militares tinham pouca autoridade, ficavam ridículos. Tinham desprezo pelos moços; odiavam os chutes doidos em latas depois da meia-noite. Reclamavam, batiam com a janela em seguida. Maújo pedia uma desculpa maquinada. Riam debochados, ele e Gertrude, na curva da primeira esquina. “Não suporto aquele cara do sobrado do Bonfim”, ela dissera. “Lembra-me Mussolini, com o peito estofado na varanda. Olha para a rua como se fosse seu quintal, e aprova ou não, com o nariz para cima, quem passa na calçada. Tenho vontade de cagar em sua porta.” Gertrude, enquanto comia nos bares, juntava gases no tubo digestivo, para dispará-los como obuses nas portas onde intuía o ronco de um fascista. Em casa, chegava vazia de vapores. “Ele pode atirar em sua bunda”, advertia Maújo. “Tem uma pistola no baú ou na mesa de cabeceira.” Os generais-de-pijama não andavam armados; quando iam à padaria, comentavam, alto, que estavam de olho nos ladrões de casas. Não havia arrombadores. Os generais se valiam de suas rápidas aparições para mandar recados aos subversivos de Olinda, acoitados, conforme diziam, no Maconhão; na furna, conforme os homens do Distrito. “Não daria tempo. Tenho a agilidade de uma guerrilheira. Ele tem a preguiça dos aposentados. Teria um infarto quando visse o monte de fezes em espiral, na frente de seu portão.” Um oficial fora levado às pressas ao hospital, quando vira de sua janela, a troça Caranguejos na Lata fazer pouco de oficiais aposentados. Não morreu. O bloco foi forçado a recolher os instrumentos. O compositor da música respondeu a inquérito no Distrito. “General resiste a cerco e tomba, há muito que não leio um título assim.” Toda a cidade cercada por tropas de coturno, catando guerrilheiros. O imaginoso casal urdia-se oculto no santuário do Guadalupe, junto da velha igreja, feito dois atentos devotos.

Maújo, meio-morto, com a memória no passado longínquo, remoçou-se na Praça de São Pedro.

O carro do Distrito estacionara ao lado da igreja. Três policiais desceram para revistar dois homens na escadaria da frente, europeus turistas com sacolas nas costas. Revistados na cintura, na bagagem. Foram conduzidos na Veraneio, no banco de trás, entre dois polícias. Cocaína. A Veraneio partiu cantando os pneus. Juntara gente. Ninguém ajuizou sobre a ação policial. O ajuntamento dispersou-se mudo, com medo de um dedo-duro encoberto.

Às nove da noite, ruas e becos desertos, portas e janelas fechadas. Um ou outro veículo, sem a pompa do carnaval, em rondas; rostos graves olhando das janelas. A lataria dos carros, comida pela ferrugem nas beiras, sacudia-se nos paralelepípedos. Os moradores distraíam-se no televisor, na novela; em cada janela ouvia-se o chocalho eletrônico da Globo. O barulho compunha um concerto com o badalo dos sinos.

O barulho místico dos sinos, sós, eram um roteiro profano de bares, gafieiras; os repiques cercavam-se de atos profanos.

O chocalho eletrônico, prendendo o morador no sepulcro em que cada casa se tornara, dava-lhe a extrema-unção. Trancados, os vizinhos não se comunicavam, mesmo crendo que viviam em comunidade porque torciam pelo fim trágico do vilão da novela.

Água para a vovó, lavagem de pratos, catação de feijão para o dia seguinte. Bocejo de sono depois da leitura da ficha técnica, inda que não entendessem de direção, de produção...

Nos aposentos, Maújo ligou o televisor. Chica reclamou; estava lendo O Romanceiro...

(*) Do romance - Conspiração no Guadalupe

(Continua na próxima semana)


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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