(Romance)
Capítulo VI - Temos um camarada de mala pronta para viagem, com segredos do Partido (*) Deviam pôr óleo nas dobradiças para evitar ferrugem, principalmente o gemido na madeira. A porta da casa de Gertrude, no Guadalupe, era de mogno maciço, já com uma vintena de invernos; fora pintada poucas vezes, com a mesma cor de chumbo do portal de Nossa Senhora do Guadalupe, em cujo oitão se mirava submissa. A tinta crestara, despregara-se embaixo, nas fendas, abrindo feridas no mogno. Gertrude não punha óleo nas dobradiças porque o gemido, conforme dizia, era alarme contra ladrão. A dobradiça rangeu, soltou um ruído medonho. Maújo apareceu na sala meio lesionado. Teria sido melhor se fosse um ladrão. Gertrude, Caetano e Xisto já o esperavam. Era a primeira reunião de tarefas, após a noite da rumba. Maújo, vexado, sentou-se na única cadeira vazia, posta num canto de modo a guardar distância prudente de Gertrude. A disposição das cadeiras, da mesa, do cinzeiro, da máquina de costura, era indício de que a (des)ventura de cada um fora sentenciada. Xisto, com o recosto encostado na parede, permanecia acuado, em desespero, saqueado de Chica. Encontrara Caetano duas vezes; para ocultar a dor, dissera que Maújo decompusera o convívio na célula, não mantivera o perfil de camarada. Caetano, sem propósitos iminentes, escondia na barba a intenção de fazer o cerco a Gertrude. Queria, não a qualquer custo, proteger a afinidade dos quatro, mas faria todo sacrifício para seguir na dianteira os desígnios de Gertrude. Os três agrupados com Gertrude no centro. Um tribunal, pensou Maújo; mas o retinir dos bombos, distante, vindo de quintal incerto, convenceu-o que estava diante de abespinhados orixás. Não havia altar, nada a ser imolado. Na parede, alto, acima dos três, fora posto o retrato de Marx; não um pôster qualquer, como um ornato de estudantes; era um papel fotográfico luminoso, num caixilho de madeira polido com verniz. Um vidro transparente protegia o rosto de Marx, barba e cabelos sob o foco da luz no teto. Maújo reconheceu a imagem adquirida pela ex-parelha. Pretendera, ela, inaugurar no réveillon, soltando rojões na porta de casa; os quatro, nos conformes da pequena corporação. Beberiam champagne, uma sidra espumante para justificar a celebração dos cálices. Cantariam a Internacional. Depois, em comitiva, marchariam triunfais para o Estrela. Dançariam rumba, sem dúvida, para arremessar às lonjuras a dormência das massas. Gertrude riscara de sua agenda a inauguração do retrato; antecipara-a logo após o rompimento com Maújo. Não consultara ninguém, sabia tirar proveito de sua ascendência sobre os outros. O retrato, com efeito distinto na parede nua de quadros, f oi visto como reforço do compromisso com o perfil severo de Marx. Maújo olhou para a parede, advertiu-se de que o guia fora posto a sua frente para vigiá-lo. A petite réunion não terminara com o estrondo de um martelo dando conta de que a pauta fora esgotada; dissolvera-se por excesso de tensão. Marx, estranho, fazia mudas censuras. Gertrude aprovava. - Xisto pede que não lhe seja dada nenhuma tarefa. Quer afastamento. Por algum tempo, segundo ele. Pede para não ser questionado nas razões do pedido. Alega problemas pessoais, quer tempo para resolver. – Falou como um juiz supostamente imparcial, Gertrude. Abriu a reunião para manter as rédeas da corporação. - É fuga ou férias? - Maújo não suportava os recursos de que Xisto fazia uso quando estava em apuros. - ?!... - Se for férias quem vai assinar? Não há férias no Partido. Se for fuga, Xisto não devia ter vindo para a reunião. Bastaria o recado. Proponho que suspendamos a reunião , não deliberemos sobre nada, visto que temos um camarada de mala pronta para viagem, com segredos do Partido. Maújo tinha de cor o perfil de Xisto, sabia que o pedido era um rogo, montagem do décor para sua retirada. Contava, Xisto, com a contusão sofrida por Gertrude. Ela, inda que suspeitasse de fuga, sustaria a censura em respeito ao dispêndio do investimento sem retorno de Chica. Eram parentes afins no item perdas e danos. Caso alguém ponderasse o prejuízo da perda de Xisto, com base, talvez, na exumação de um parágrafo esquecido dos estatutos, Maújo teria que fazer autocrítica. Fatal para ele, porque poria em risco sua relação com Chica. Para Xisto, um bom resultado, posto que reabriria a chance de repor sua relevância sobre ela. Caetano, temendo abrir o desvão dos sentimentos, mencionou os estatutos; não queria revolver chagas ou dar amparo a teses passionais. Mencionou-os como uma soma à discussão, com a mesma frieza da regra. - Fora do Partido, Xisto não será mais membro. Poderá ser um aliado, um simpatizante sem acesso a nossa rotina. Ele deve saber disso e deve se pôr como tal. Se teve a responsabilidade de assumir tarefas, terá a mesma de manter o sigilo sobre ele e sobre nós. Maújo queria retirar-se depois de certificar-se de que, sob a efígie de Marx, fora instalado um funeral. A pompa da cerimônia daria conta da morte de Xisto, com o seu recuo. Xisto, mesmo vivo, desertando, seria tão esquecido quanto um morto. Não teve a sorte de morrer de fato, e se retirou com o juízo empastelado. Tragédia pessoal sem direito a desagravos, o inverso do que fizera com as demandas das confissões que Chica lhe fizera. Despediu-se três dias antes do sábado gordo; dia seguinte, viajou para a Bahia, onde comprou roupão branco, patuás e barrete para desfilar nos Filhos de Gandhi. Cantou o badauê com pouca graça, julgando-o terapêutico. Procurara Chica dizendo que viajaria s em propósitos de volta; pedira que o acompanhasse à estação. Falara com a retina descaída, os braços cruzados, sem prumo. Ouviu-o, ela, durante a meia hora que antecedeu a partida do ônibus. Sentados num banco, ouviu-o inerte. Abraçou-a com recato de adolescente. Quando subiu no ônibus, Xisto pareceu um vodum sem poderes. A ausência de Xisto deu lugar a um vácuo nunca suspeitado. Maújo e Chica, juntos, sob uma incerta bênção, vagaram sem rédea nas ruas e ladeiras da Cidade Alta. Banharam-se na bica dos Quatro Cantos, na do Rosário, na de São Pedro. Nos Quatro Cantos, untaram-se de argila preta para tirar olhados. Nos Milagres, banharam-se na água do mar. Ao fim de cada dia, ela sugeria comerem mais moqueca de carapeba. Não se queixava da pimenta malagueta, mas bebia vinho de pasto para se aliviar. Queimavam as calorias no colchão da pousada. Quando o vento soprava as ondas, misturava-se às notas de trombones e trompetes das orquestras. Na areia, casais espojados em banquete de luxúria. (*) Do romance - Conspiração no Guadalupe (Continua na próxima semana) Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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