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Contos
20/06/2009 - 07h41
Conspiração no Guadalupe II
Marco Albertim
 
(Romance)

Capítulo II - Um traço em declive no meio (*)


O Estrela e o Maconhão têm em comum o apodrecimento do ar. Maújo e Chica o sorviam mudos, atenuando indistintas culpas. Acudia-os a sonoridade remota da rumba. Do lado de fora, dois casais tramavam o delírio noutro retiro, em cama multicor, como os olhos chispando liamba.

Gertrude sugerira uma reunião, por certo escorada nos estatutos. Com os raios que sua memória retivera da leitura, mencionaría-os, inda que se queixasse de não os ter há muito na mesa de cabeceira, ao lado da cama. Queixava-se do sumiço dos estatutos; tinha medo de, sem o guia, entregar-se ao desatino da ideologia pequeno-burguesa.

Nada de sugestão! Tirara proveito da rendição de Maújo à influência que exercera sobre ele, no aprendizado da luta de classes. Convocou a reunião com orgulho, vaidosa, justificando o pragmatismo de sua militância cricri. Queria travar a luta de classes no relacionamento pós-amoroso, não dar tréguas a simulações de amor. “Camarada Maújo, eu o acuso de manipulação de sentimentos!” Gertrude não podia convocar um júri, formalizar acusação; podia juntar razões classistas, duras, dramaticamente rubras, para execrar o comportamento anárquico do ex-parelho. “Une petite réunion!”, o francês súbito à luz proscênia do farol, obstruindo réplicas. Na cama, Gertrudes era insurrecional; na luta de classes, animosa.

Maújo usou todas as fichas e comprou mais; mudava de música e, via de regra, voltava à primeira. Chica, coquete, sabia que sua silhueta passeava na imaginação dele, nas imagens de cada letra. Entregou-se com desmaio, nos volteios do corpo, no rum amargo, na lambujem dos beijos. Logo o sol filtraria luz nas telhas, mostrando o chão poento, um verso fescenino na parede... a porta de saída. A luz indesejada podia trazer a possibilidade de ruptura do contrato que tivera como único aval a batuta do maestro.
- Mais duas doses. – Quis dizer: não desçam a cortina.

O garçom trouxe os dois runs. Não era de dar gorjetas, ele, mas deixaria o troco na mesa como parte da celebração; dupla celebração porque não teria que sentir o remorso depois que fodia com Gertrude. Chica, não a conhecera, não tiveram chance de ser amigos. Espreitara-a sem distinguir-lhe o rosto, no minguado prazer que sentira com Gertrude.

O dia os flagrou com os cotovelos sobre o frio mármore da mesa. A umidade dos copos, fragmentos de gelo no reboliço dos dedos no rum, um prato com azeitonas e palitos, inundado. A mesa era um repositório de bactérias, de crenças jorradas; um altar recém-venerado, sem toalhas. A despesa veio em nota com cabeçalho ocupado por lilases roxas; o papel recendia a patchuli, como o fino gargalo de Chica.
- No passaran!

O garçom embolsou a gorjeta, deu com a mão e não homenageou La Passionaria.

Na pousada à beira-mar, os gritos de banhistas abafavam os gemidos de Chica. Toda a praia fora tomada pela arraia-miúda do arrabalde.
- Um dia isso aqui será um balneário sem sífilis. – Tinha o costume, Maújo, de dar chances à molecada; fazia disso um ofício.

Três assuntos o comoviam: cultura, lazer e saúde. Entretinha-se nas carnes de Chica, sorvendo a viração marinha, purgando-se dos vícios da noite. O corpo branco dela, estremecendo sob a lixação de sua língua, embalava suas convicções políticas.
- Você já teve sífilis?

Sabia que ele não tinha, quis provocá-lo, conhecer pormenores da carnação. Ele falou do mal-de-coito para familiarizá-la com as intimidades do sexo. Ouviu-o sem repulsa. Era a primeira vez. Queria sugar cada pingo de sua luxúria.
- Nem sífilis, nem gota. Tenho uma papa muito grossa nos escrotos.

Ela riu, pressentindo a luxúria nos limites; riu feliz com a possibilidade de se apropriar da fervente luxúria. Ele manteve o corpo com o tórax sobre o ventre dela; sentiu, nas escamas do rosto mal barbeado, a coifa escura dos pentelhos podados nas laterais, com um traço em declive no meio. A felação mútua levou-a ao estupor. Maújo estremeceu, interruptivo, ao cravar as unhas no colchão de onde veio a lembrança dos recontros com Gertrude. Devolvera-lhe o anel, ela, cuja safira refletira seus primeiros coitos. No fundo, ele sentiu-se herdeiro sem encargos de tributos. Julgou-se usurário, posto que Gertrude fora despossada.

Segurou na palma da mão o anel enquanto Chica se endurecia. A safira não refletiu os espasmos. A pedra há muito embaçara, era um saponáceo; como seu coração em relação a Gertrude, vago e desculto.

Chica imaginou que a oscilação das águas irrompera na janela mourada, e regurgitou sem fôlego sob o jato do esporro.

Dormiram nus sobre o lençol úmido de suor e de plasmas. Acordaram com calor, com o ruído de banhistas. A janela fora aberta. Abraçados, julgaram-se superiores às ondas.

Depois do banho de mar, voltaram para o Maconhão; na mesma mesa, o mesmo garçom. Ovos com presunto, pães fatiados, manteiga, suco de laranja. A celebração não fora interrompida. A radiola arrotava com fastio o mesmo acorde sensual da noite.

Chica penteara os cabelos. O rosto sardento dava-lhe a aparência de uma leoa, um filhote de leoa. A alegria estava encolhida na boca, com movimentos circulares no queixo. Quis voltar para a pousada. Maújo deu-lhe a chave do aposento, disse que queria andar, juntar idéias. Foi assuntar o juízo na quietude do Alto da Sé, numa pedra de cantaria à sombra de um fícus de copa fechada.

(*) Do romance - Conspiração no Guadalupe

(Continua na próxima semana)


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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