Acordou cedo. Pensou se devia ou não se levantar àquela hora. Espreguiçou-se languidamente como o fisioterapeuta havia recomendado. Ouviu leves ruídos de seus ossos que estalaram gostosamente. Abriu a janela e olhou a mata tão próxima de seu quarto. Ouviu os cantos matinais dos pássaros que tanto já a havia feito feliz. Desceu as escadas com passos lentos e pensou que teria que colocar apoio na mesma pois temia ter vertigem e desabar escada abaixo. Seriam cordas que colocaria ou madeira para combinar com a sacada frente à sua casa? Ficou em dúvida... ora... pensaria nisso noutro momento... Desceu; colocou água para o seu trivial café da manhã sempre tão solitário. Procurou na memória de imagens difusas momentos em que não estivera só à mesa em suas manhãs. Colocou o coador no velho apoio, colocou-o na já envelhecida garrafa térmica e, para não ficar à toa enquanto a água fervesse, foi lá fora olhar a mata. Um pássaro diferente murmurava ao mundo seu bom-dia. Era de um verde entremeado de preto. Este não havia ainda visto ou, então, não o notara em suas manhãs? Correu para o fogão. A água já espumava na caneca. Coou seu café, adoçou-o com sacarina. Sentou-se à mesa. Pensou em ler algo enquanto sorvia lentamente seu café. Preferiu que sua mente divagasse... Já havia lido o suficiente. Levantou-se procurando o que fazer. Foi à casa de uma amiga adoentada. Tentou fazê-la sorrir pensando que nem ela mesma já o conseguia. Foi a uma floricultura e comprou uma begônia toda florida. Colocou-a num canto da sala. Num lugar que a pudesse admirar. Foi novamente à cozinha pois já sentia fome. Seu corpo necessitava de alimento. Faria um filé de peixe ou de frango? Na dúvida tirou os dois do congelador. Pacotes leves que seu açougueiro e peixeiro haviam pesado. Talvez com pesar por tão pouco peso? A manhã já estava quase se esvaindo. Foi à geladeira e pegou os potes com temperos que os deixava preparados para quando deles necessitasse. Olhou para a cebola... para o alho... para a cebolinha e a salsinha: seus temperos preferidos. Achou-os murchos mas não estava com vontade de picar outros. Usou-os assim mesmo, pois se decidira pelo peixe. Além dos temperos já preparados, só precisava de um pouco de limão. Pegou um que estava quase amarelecido, mas era seu preferido: limão cravo. Cortou-o ao meio. Temperou o peixe. Queria comê-lo bem fritinho e passado em bastante fubá como o fazia na infância, mas já não o podia: seus triglicérides estavam em alta; tinha que se cuidar. Guarneceu seu peixe com batatas, cenouras e muito... muito cheiro-verde que adorava. Lembrou as instruções da nutricionista: três cores à mesa são sinônimas de saúde. Levou-o ao forno nos 180 graus. Lavou uma xícara de arroz que nem era a medida certa para seu apetite. Sobraria mas, menos que isso, sua panela não suportaria o calor e o queimaria. Preparou uma salada de alface, chicória e tomate: poucas folhas e apenas um tomate. Colocou uma toalha já manchada cobrindo a mesa. Sentou-se em sua cadeira predileta. Divagou sobre o passado e relembrou os domingos em que sua casa exalava a cheiro de frango assado, pernil, lombo e maionese e, depois do almoço, belos pudins e bolos regados a muita calda de chocolate. Já não podia se dar ao luxo e comê-los. Hoje só uma sobremesa dietética. Sentiu no ar que seu peixe já chegara ao ponto. Levantou-se, desligou o forno e, lentamente, retirou-o. Pôs a mesa. Apenas um prato, um garfo e uma faca. Pensou em colocar mais um talher. Talvez viessem visitá-la sem avisar. Desistiu. Há anos seus parentes próximos já não se aproximavam. Tentou desculpá-los imaginando que o sol dos últimos dias os havia levado a alguma praia. No fundo sabia que já não se preocupavam com ela em vida mas sim apenas quando aqui já não estivesse. Ficariam com a velha casa afinal, o único filho que tivera já não representava perigo a seus parentes pois partira prematuramente. Lágrimas vieram-lhe aos olhos mas... logo silenciaram. Caminhou novamente até a cadeira. Serviu-se de cada alimento que preparara. Pareciam insossos. Os sabores haviam se dissipado ao longo dos anos. Procurou na memória o sabor que mais gostara: pimenta curtida em muito azeite, vinagre e alecrim. Era assim que sua mãe as preparava. Almoçou mastigando cada alimento com tempo de folga. O que faria depois? Tiraria uma sesta e esperaria o anoitecer. Assim o fez. Após a sesta, assistiu aos programas dominicais. Todos obsoletos e repetitivos. Neles via graça sem graça. Não conseguia achar aparato para seu desagrado. Mexeu em suas violetas que descansavam do sol ao anoitecer por sobre o parapeito da janela da sala. Retirou cada folha já envelhecida. As regou cuidadosamente preocupada para que a água não tocasse em suas folhas. A noite chegou. Preparou uma sopa rápida, dessas de envelope onde as instruções, frente aos seus olhos já cansados pela idade, lhe pareciam difusas. Após pronta, pareceu-lhe sem sabor. Talvez tivesse errado na mistura do pó com a água fervida. Isso não importava tanto quanto sua necessidade de armazenar energia. Encheu uma terrina e, pensando nas canjas e brodos que em tempos idos sorvia, sorveu o caldo desprazeirosamente. Já era hora de recolher-se. Desligou o televisor que havia deixado ligado para ter companhia. Subiu as escadas novamente pensando que nela teria que colocar apoio. Seria de madeira para combinar com a sacada? Tinha tempo. Pensaria nisso outro dia. Nota do Editor: Lourdes Moreira é professora da Rede Municipal e Estadual de Ubatuba.
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