Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), o urbanista Nestor Goulart Reis é um dos principais pesquisadores da urbanização dispersa. Trata-se de uma tendência mundial, mas, ao mesmo tempo, um fenômeno que ainda começa a ser estudado. Nesse tipo de urbanização, novos bairros surgem longe do centro da cidade e se espalham em diferentes formas, que vão desde condomínios de luxo até favelas no entorno de estradas. Reis coordenou o Projeto Temático “Urbanização dispersa e mudanças no tecido urbano. Estudo de caso: Estado de São Paulo”, apoiado pela FAPESP e encerrado em 2008. De acordo com o professor, os estudos demonstraram que, nas últimas décadas, a população brasileira se concentrou em um número reduzido de grandes núcleos metropolitanos. Mas, paradoxalmente, a concentração nesses polos foi acompanhada de uma dispersão no espaço intraurbano. “Houve um esgarçamento do tecido urbano”, disse. Em entrevista à Agência FAPESP, o urbanista explica a origem dessa nova forma de ocupação do solo e alerta para suas consequências: a dispersão urbana como uma “fábrica de favelas”. Além disso, os estudos constataram que o processo está esvaziando as áreas centrais das cidades médias e grandes, ocasionando um desperdício nos investimentos públicos em infraestrutura nesses locais. Segundo Reis, como o processo ainda não é totalmente conhecido, há um descompasso entre os investimentos do Estado e a realidade urbana. Para ele, é fundamental estudar o fenômeno e gerar dados que possam orientar políticas urbanas públicas e privadas. Leia a seguir os principais trechos da entrevista. Agência FAPESP – Quando se iniciou o processo de urbanização dispersa? Nestor Goulart Reis – Apesar de ainda ser pouco estudado, o processo teve início em quase todos os países industrializados após a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, ele se acelerou entre 1970 e 1980. No século 19, em todas as cidades as fábricas ficavam à beira das ferrovias para ter acesso ao carvão. Isso começou a mudar ao longo do século 20, com o desenvolvimento do uso da eletricidade e a construção de grandes rodovias. Entretanto, o processo foi interrompido com a crise econômica de 1929. Quando terminou a guerra, os governos começaram a investir em infra-estrutura e o processo foi deflagrado. Mas nos últimos 20 anos ele tomou proporções globais. Agência FAPESP – Todo o processo teve início então com a dispersão industrial? Goulart Reis – Sim. Com a mecanização da indústria havia mais investimentos em equipamentos do que em mão-de-obra. Então, foi preciso instalar as fábricas em grandes áreas e isso foi possível porque não havia mais dependência do carvão e das ferrovias. A dispersão industrial gerou bairros operários nessas áreas. Em São Paulo, na primeira geração criaram-se as áreas metropolitanas. Na segunda geração desse processo, depois de 1970, as indústrias se dispersaram para áreas mais afastadas – as cidades médias paulistas a partir daí passam a crescer mais do que a área metropolitana de São Paulo: Campinas, Vale do Paraíba, Cubatão e Baixada Santista, Sorocaba, Jundiaí. Nosso sistema metropolitano hoje tem mais de 30 milhões de habitantes. Agência FAPESP – O mesmo ocorreu em outras regiões do país? Goulart Reis – Tivemos dez grandes áreas metropolitanas se formando na década de 1970, de Porto Alegre a Belém. Também cresceram as cidades médias ao longo das rodovias – casos como Uberlândia, em Minas Gerais, ou Ribeirão Preto, no interior paulista. Além disso, houve nesse período uma concentração em cerca de 50 polos em áreas metropolitanas e não-metropolitanas – isto é, aqueles em que a cidade central não chega a 1 milhão de habitantes. Mas essa concentração populacional, que explodiu o sistema urbano, não se distribuiu por igual pelo território. Agência FAPESP – Como foi essa distribuição? Goulart Reis – Nesses 50 pontos do território nacional, por um lado há uma concentração, mas, por outro, há dispersão. Quando a população chega, os preços sobem. A tendência é que os que chegam procurem os municípios vizinhos, onde a terra é mais barata. Então, em vez de crescer como uma mancha de óleo como no tempo das ferrovias – porque era preciso que todos estivessem colados – as pessoas usam as rodovias e estradas vicinais e vão morar em conjuntos fora da cidade. E entre esses núcleos também há mudanças, não é mais o mundo rural que conhecemos no passado. Nas áreas extensas, há a agroindústria. Nas áreas pequenas, há propriedades muito diferenciadas, que se aproveitam das áreas urbanas. Quando nos afastamos disso, vemos um Brasil esvaziado. A grande parte da população mora nesses 50 pontos onde há, ao mesmo tempo, concentração e dispersão. Agência FAPESP – Então as metrópoles sofrem um inchaço, mas de forma descontínua? Goulart Reis – Exato, há um esgarçamento do tecido urbano. Alguns geógrafos afirmam que não há dispersão, que a área metropolitana de São Paulo é que cresceu, mas isso não é verdade no intraurbano. No intraurbano há dispersão. No país, temos concentração nos 50 polos e dispersão no intraurbano. Por isso, estudamos esse tema em escala: no país, depois nas regiões e, em seguida, no intraurbano. E constatamos que o intraurbano explodiu e se dispersou. Agência FAPESP – Esses novos padrões de urbanização ocorrem em todo o mundo? Goulart Reis – Constatamos um processo parecido, em larga escala, em vários países da Europa e nos Estados Unidos, mas as características diferem muito em cada país. Na Europa a dispersão é praticamente toda da classe média. Os problemas sociais estão basicamente ligados aos imigrantes. Ao passo que nós temos o que chamamos de “dispersão dos pobres”, que corresponde a quase metade dos espaços de dispersão no Brasil, com problemas muito mais graves para serem enfrentados. Nossa dispersão se estabelece nas regiões rurais de uma só vez. Na Europa há um grande número de aldeias e povoados rurais, e uma parte da dispersão se fez a partir dessas aldeias. A população ali se transforma e adota padrões metropolitanos. No Brasil, a dispersão se dá em áreas ainda desocupadas, de uma vez só. Em 30 anos passamos por todas as etapas que a Europa passou em dois séculos. Agência FAPESP – No Brasil a tendência da dispersão urbana se associou, então, a uma explosão demográfica e urbana? Goulart Reis – Vejamos: em 1940 o Brasil tinha 42 milhões de habitantes, sendo 13 milhões urbanos e 29 milhões rurais. Hoje, temos 190 milhões de habitantes, sendo 30 milhões rurais e 160 milhões urbanos. Trata-se de um país urbano. Em pouco mais de 60 anos, a população urbana cresceu mais de 12 vezes. Foi o maior processo migratório rural-urbano da história da humanidade. Só foi ultrapassado recentemente pela China. Isso é tão sério que os demógrafos chineses estão estudando a formação das cidades médias brasileiras. Aqui, a população cresceu rapidamente em número, mas esse crescimento não ficou no campo. As pessoas não moram em qualquer cidade. Muitas cidades pequenas perdem população. Algumas até mesmo desaparecem. Agência FAPESP – Que consequências a dispersão urbana pode trazer? Goulart Reis – Um dos aspectos principais é que ela tende a tornar obsoletos os padrões correntes de controle do Estado sobre o espaço urbano. Porque toda a legislação está baseada no poder do município. E todos os problemas que discutimos aqui são intermunicipais. A legislação de loteamentos e condomínios é obsoleta, não responde às necessidades de hoje. O grosso da urbanização é feito à margem da lei. Agência FAPESP – Tanto no caso dos ricos como no dos pobres? Goulart Reis – Antes, só os bairros populares estavam à margem. Agora, a classe média também ocupa irregularmente. Isso porque toda a estrutura administrativa está atrasada em pelo menos meio século. Mas as pessoas não estão dando atenção aos problemas urbanos no Brasil. Agência FAPESP – Todo esse processo ainda continua avançando no mesmo ritmo? Goulart Reis – O movimento rural-urbano arrefeceu, porque a população proporcionalmente já é muito menor. Mas, por outro lado, as cidades menores permanecem se esvaziando. O mesmo ocorre com o centro das cidades grandes. Bairros nobres de São Paulo, como os Jardins, perdem população há 20 anos. Os bairros periféricos ainda crescem, mas a indústria saiu da cidade. Bairros que eram altamente industrializados no início do século 20, como a Mooca, não têm mais fábricas. Os municípios como os do ABC e Osasco, que absorveram essas fábricas a partir dos anos 1940, estão também se desindustrializando. As fábricas estão indo muito mais para o interior ou para outros estados. As áreas metropolitanas mudam para centros de serviços e comércio. Os serviços, por sua vez, organizam-se em escala industrial – ensino, cursos de inglês, laboratórios médicos –, tudo padronizado em redes nacionais. Mas os velhos centros estão esvaziados, assim como as áreas portuárias. Agência FAPESP – O que motiva hoje o processo de dispersão? Goulart Reis – As pessoas são atraídas de acordo com a dinâmica do trabalho e dos negócios. É um fenômeno mundial. Isso traz o inconveniente de abandonar áreas nas quais foram feitos grandes investimentos por um século ou mais. Os bairros industriais paulistanos abandonados são um desperdício gigantesco de infraestrutura formada com investimentos públicos. Não se pode jogar fora cidades, nem partes delas. O centro de São Paulo tem cerca de 100 edifícios fechados. É um desperdício. Por outro lado, parte dos investimentos feitos nos bairros ricos e condomínios fechados é realizada pelos próprios loteadores. Como se constrói mais em áreas novas, mas dispersas, o terreno é mais barato e o mercado imobiliário contribui com a dispersão. Agência FAPESP – Falamos dos condomínios de luxo, mas como se dá a dispersão no caso das favelas? Goulart Reis – Durante a construção das rodovias, condomínios, fábricas e refinarias, as construtoras levam os operários. Os mais pobres, enquanto a construção está em curso, usam sobras de materiais para se instalar. Quando termina a construção, apenas a parte da mão-de-obra mais qualificada é aproveitada nas fábricas. Os demais se instalam precariamente. Então, a construção das áreas dispersas é uma fábrica de favelas. Ela gera bolsões de miséria. Estamos fabricando monstruosidades urbanísticas porque não há regras claras para esse tipo de processo. Isso acontece porque não damos atenção à questão urbana. Agência FAPESP – Os investimentos públicos não levam em conta a nova realidade urbana? Goulart Reis – Não levam em conta. Porque não temos conhecimento suficiente dessa nova realidade. Até 1960, havia acompanhamento dos investimentos públicos e das mudanças urbanas. Hoje, não temos mais. Seria preciso ter no Brasil núcleos de estudos sobre cada uma dessas 50 aglomerações urbanas, estudando sistematicamente esses processos, com dados anuais que permitissem orientar políticas públicas e privadas. Isso também é do interesse do mercado, porque o setor de construção civil funciona em escala industrial. Seguindo padrões de indústria, precisam que as regras sejam fixadas com antecedência. Interessa ao grande investidor que haja coleta e organização de dados.
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