25/11/2024  22h36
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Contos
03/02/2009 - 17h03
Ela tinha alergia à lama do Capibaribe
Marco Alberteim
 

I
Silêncio!

A polícia ficara no corredor, de custódia. Ela fora trancada no quarto, com a mãe do lado. Pernas com ataduras, vestiu a roupa trazida pela mãe; pulou a janela. Puseram-na numa cadeira de rodas, dois camaradas reais. Caminharam como visitas de rotina. Do lado de fora, um Fusca levou-os a um apartamento no Bexiga. Foi tratada por um médico amigo, e saiu com as queimaduras cicatrizadas.

A polícia vasculhara o Morumbi à cata de uma loura, então em agitação de rua, e de família grã-fina. Tinham seu retrato. No hospital, não trocara confidências com parceiros ocultos; urdira uma fuga como um enredo de folhetim. Aconteceu.

Agora, espiando com estranheza a lama do Capibaribe, sorveu o ar impuro e sentiu um leve prurido nas pernas. Tinha dúvidas se seu retrato não fora espalhado. Os jornais não deram conta de uma loura que deixara a polícia de São Paulo confusa. Ela não mudou a identidade; só o rosto, agora polvilhado de cosméticos.

A lama do rio deu vazão a uma paranóia no meio de estranhos. Ela escondeu dos novos parelhos a impressão de cilada iminente; mas integrou-se logo, conforme seu pragmatismo veloz. Se lhes ordenasse uma invasão a um posto de polícia, não hesitariam se se pusesse à frente. Punham-se de ouvidos, esmolando uma palavra que fosse de suas frases sem lesões.

A reunião se deu num sítio isolado. Chegaram à noite. Ela deitou-se sem pijama, com a calcinha, cobrindo-se dos pés à cabeça; no mesmo quarto onde Raquel se deitara e tinha o costume de dormir. Durante o dia, inquiria os sitiantes sobre o dia-a-dia de cada um. Não era insone, deixava-se velar por operários em motins. Fantasmas vivos. Via-os de dia, examinando suas feições; resgatava-os nos sonhos.

Ingrid apareceu na porta, quando os outros conversavam nos fundos do quintal. Enrolada num lençol branco, cabelos soltos, fadiga nos olhos. Falou-lhes baixo, com autoridade. Apreciavam-lhe o discurso; beberam como um ungüento noturno, o juízo sem tropeços de Ingrid.
- Raquel me disse que não é comum por aqui, reunião de madrugada. A luz pode chamar atenção. Vocês devem entrar para dormir.

Horácio tinha caderno e caneta, anotando frases, gestos, o que lhe parecia útil para escrevinhar contos.
- Estamos discutindo lingüística. Poderá a revolução fazer da língua, o que fará com a socialização dos meios de produção!? Quero dizer: a língua será posta num tubo de ensaio para ser objeto de experiências?

Ela não respondeu. Antes que sumisse dentro de casa, ele insistiu:
- Ingrid! Seu nome não é nada brasileiro!

Ela voltou-se.
- Eu sou internacionalista! Meus costumes são tupiniquins!
- Pode ser uma bela resposta para um nacionalista que se esconde no tronco dos tupis.

A resposta não saiu de Horácio; de Miguel, até ali calado, à cata de um mote, de uma moita para dar o bote.
- Tenho prática de nacionalista?

Perguntou chispando nos olhos de Miguel; chispando para tirar dali as vísceras do provocador.
- Não. Mas nenhum credo nasce inteiro. Surge potencialmente.
- Estou com sono. Não estou me evadindo da discussão. Temos uma pauta marcada para amanhã, ou mais tarde. Não demorem.

Não evitaram, quando se virou para entrar, olhar o lençol fino por onde se via o contorno de suas coxas, interrompido pelas nádegas. Demorou dois minutos o transe.

Entrou deixando um rastro de fêmea que não se deixa capturar nem na controvérsia. Largou-os confusos. Iluminava-os a luz rala na cumeeira. Conversaram um pouco para não se dar por vencidos. Depois, ouviram-na. Não era sua voz conhecida. Ouviram-na austera, morto-viva. - Silêeeencio!...

Dormira para se reencontrar com seus duendes. Tinha conversação amistosa com eles; ouvia-os reverente, animosa. Sonhava com um ou com todos, gritando apoio ou rejeição. Um camponês urdira uma tocaia, tinha o seu apoio. Ouviu a voz de Miguel, que pusera em dúvida seu internacionalismo. Ordenou silêncio.

Entraram. Suspeitavam ser o ruído de estranhos a razão do gemido de Ingrid. Horácio advertiu:
- Ela não está dormindo, está arrumando a crítica ao nosso comportamento irresponsável.
- Com razão - rendeu-se Miguel.
- Podemos dormir em paz porque estamos sob a tutela de Ingrid. - Alfredo, com a lente grossa dos óculos, ocultando a cobiça de ser capturado pelo sonho de Ingrid. Sentia-se figurante dos enredos dela.

II
Operários de todo o mundo...

Raquel fora a primeira a acordar, trouxe pão da padaria. Não entendia de revoluções. Viúva, só, saudades dos filhos longes. Aproveitou para fazer a refeição como se estivesse em família; feliz em cevar moços dispostos ao sacrifício. Forrou a mesa com uma toalha quadriculada; dispôs leite na jarra de barro, cuscuz na bacia de porcelana, ovos na frigideira de ágata. Ingrid elogiou o cuscuz, elogiou sem confessar que há muito não comia cuscuz de coco com leite doce. Conversou só com Raquel, conhecendo-a. Os outros, olhara-os um a um nos olhos; preferia crer que não suspeitavam do sussurro com os afins difusos.

Alfredo nutriu-se com os óculos, pinçando cada um de seus traços para reencontrá-los noutra mulher.

Ela tinha um par, não se fazia acompanhar porque viviam ocultos. Encontravam-se em lugar não sabido, com intervalos longos. Não queria chorar, chorava. Na bolsa onde guardava os cosméticos para disfarce, guardara uma cueca dele por distração. Tirando, depois, o estojo de ruge, o talismã veio preso à tampa. Não conteve o espasmo na presença de Alfredo.
- A cueca de meu marido!

O pobre Alfredo desfez a tenção de sitiá-la.

Reuniram-se por todo o dia. Antes que começassem a falar, ela increpou a indisciplina à noite; increpou sem lesões na voz, com pose alegórica, sensual. Manteve-os reféns de sua censura. Eles experimentavam gozo, agonia. Alfredo, que dormira para sonhar como insurreto dos propósitos de Ingrid, teria preferido a dor do infarto à acusação de pôr em risco a segurança. - Liberalismo!

Horácio quis fazer a ata da reunião. Ingrid advertiu-o. A polícia poderia pôr os olhos no registro. Ele queria, queria para narrar a tensão escoada pelo libelo de Ingrid. Conformou-se olhando suas cicatrizes nas pernas, do ácido jogado por polícias; as compridas estrias sob a saia, infundindo densidade as suas palavras.

Escrevera um romance que fora recusado pela editora; foi lido por todos, com exceção de Ingrid. Ela alegou prioridade a uma ocupação cujo segredo manteve com os olhos fixos em Horácio.

Depois do libelo, expôs seus propósitos de incitamento popular.

Doença infantil! Horácio via em Ingrid o gênero de esquerdismo diagnosticado por Lênin. Não se contrapunha, rendido ao apuro de suas palavras, às cicatrizes deixadas pelo inimigo.

Não houve conversa à noite nos fundos.

Raquel, sem nada dizer, matara uma galinha de penas raras no sobrecu, gorda. Preparou uma canja. O apetite de cada um urdiu um menu burguês. Não tinham o costume de comer galinha de capoeira; comeram, repetiram sem pedir licença. A gordura colidiu nos intestinos. Ingrid, mais diarréica, foi acudida pela erva-doce de Raquel; suou, não perdeu a compostura nem quando sentou três vezes na latrina de cimento. Os outros foram à latrina com remorsos por não terem advertido a guia. Raquel conteve os rapapés.

Desfez-se a reunião depois de uma semana. Ingrid permaneceu na casa. A única vizinhança era um arruado a dois quilômetros. O resto eram granjas dispersas, num raio de cinco, seis léguas. Raquel não podia compartir a inteligência da hóspede; ocupava-se com a vassoura no terreiro, tangendo bichos, cozinhando. Ingrid aproveitou para estudar; leu os seis volumes d’O Capital. Mais tarde confessaria ter sido vítima de insofrida pressa.

Dormiu num quarto vazio. Raquel, com o sono ininterrupto, não ouviu a verbiagem noturna. À leitura de cada livro, Ingrid intuía ser capaz de transmitir o conhecimento a uma assembléia de operários. Ela deitava-se esperançosa de não dormir só, no desvelo dos duendes. A assembléia ressurgia toda noite, com insurgentes de rostos incertos. Operários de todo o mundo... Davam-se as mãos, apartavam-se para aplaudir.

Numa noite, Raquel foi ao banheiro, ouviu em frente ao quarto o balbucio. Empurrou a porta para certificar-se de que a casa não fora invadida por ladrão. Ingrid jazia sob o lençol branco, a cabeça enrolada no pano, nenhum fio de cabelo à mostra; rosto vermelho, beiços se movendo. Mijando, Raquel ajuizou-a freira, com recatos de dia e ricto à noite.

III
Pulou feito um saltimbanco

Durou quinze dias o retiro. Ela redigiu uma peroração pregando o voto nulo nas eleições. Entregou-a a Alfredo e foi para casa. Não convieram sobre as palavras. Ninguém duvidava dos dotes persuasivos de Ingrid. Nem Horácio! Foi difícil entender sua letra hieroglífica. Alfredo, na conjura do amor impossível, decifrou traço por traço. Sorriu feliz. Horácio, estorvado.
- Devia exercitar a escrita, nossa orácula... Onde aprendeu a escrever assim? Com egípcios, no fundo de uma pirâmide...

Toda a noite acordados, imprimindo cinco mil cópias da folha volante.
- Teremos cinco mil votos nulos e duas tendinites - azedou-se Horácio.
- Tendinite aleija. Não vou ficar aleijado e não poder destravar uma matraca.
- Você tem dedos ágeis, Alfredo. Poderá destravar qualquer pau-de-fogo. Só não poderá detonar o fogo de Ingrid.
-?!
- Isso mesmo! Estou dizendo que nossa tutora tem mercúrio nas veias. Não precisa que lhe acendam o pavio. Ela é chama, toda chama; uma labareda que não se deixa queimar e queima todo mundo. Está doido por ela, não é mesmo?
- Ela me atrai.
- Tenha cuidado. Ela é fogosa, mas pode jogar água fria e lhe deixar impotente por um bom tempo. Ela é fria, cruelmente fria nas verdades.

Quatro da manhã, não resistiram ao sono. Interromperam para se deitar. Duas camas no quarto dos fundos. Às nove continuaram. Meio-dia o relógio da parede badalou para dar conta da fome. O portão da frente rangeu. O pai de Alfredo entrou. Com as volantes numa sacola, pularam o muro para o quintal vizinho. Não havia ninguém no terraço, onde teriam que passar para ganhar a rua. Foram surpreendidos por um velho troncudo, zeloso de sua posse.
- O que é isso? Vocês estão invadindo minha casa!

Alfredo conhecia-o, e nunca trocara palavra com ele.
- Desculpe, meu senhor. Só fizemos isso para evitar um constrangimento. Há uma visita em minha casa que nós queremos evitar. Desculpe.
- Era o que faltava!...

Ingrid redigira confiante na aprovação dos parceiros notívagos. Volantes em maços de cinco, dez, distribuídas sob as portas de residências operárias.

Horácio teria que trabalhar na manhã seguinte, foi dispensado. Sentiu alívio porque se pouparia dos reparos dela.

Alfredo e Ingrid, Miguel e Alice se fingiram de namorados; braços dados, sobre os ombros. O primeiro casal seguiu a Rosa e Silva; o segundo, a avenida Norte, a partir de Casa Amarela. Pararam, cada um em sua via, num boteco vazio. As mulheres se abstiveram, os homens entornaram cachaça pura. No cheiro da bebida, o disfarce.
- Pura! Sem nada! Quero comer alguma coisa - queixou-se Miguel, e comeu um bolinho de carne com cheiro de mofo.

Alfredo bebeu sem se queixar; fez do copo o instrumento de imolação por poder tocar em Ingrid... E não celebrar a posse. Ela, soberana e submissa, confidente dos duendes.

Encontraram-se no lugar combinado. Cada casal percorreu um lado da rua. Não demorou a distribuição dos papéis. Ingrid ficou com remorsos por não terem trazido mais cinco mil. O lugar estava deserto. Ruas com buracos, fendas; impossível o trânsito de camburões. Foram para a rodovia à beira da mata, às duas horas. Subiram no primeiro bacurau. Sacolas vazias, sossegados, com aparência de casais. Saltaram na Riachuelo, sem ninguém na rua. Ingrid livrou-se do braço de Alfredo; livrou-se e pulou feito um saltimbanco.

De manhã, o bairro encheu-se de polícias.

Comemorou a seu modo, Ingrid, com o par, em lugar incerto, longe da morrinha do Capibaribe.

IV
Pênis místico

Sumiram de circulação até a polícia relaxar a vigilância. Alice viera para reforço, e recolheu-se em casa, com o marido desconhecido dos outros. Horácio, Alfredo e Miguel, solteiros, juntaram-se às segundas-feiras em Água Fria. João, o velho, serviu-lhes um caldo grosso de feijão com pimenta. Caldo com cachaça. Com o bar vazio, disse-lhes:
- Stálin perdeu a paciência com Trotsky. Foi provocado muitas vezes. Provocação pessoal! Chamar Stálin de vacilador! O marechal de aço! No começo, foi paciente. "Pare com isso, Trotsky... Pare com isso, Trotsky." Stálin perdeu a paciência, e decidiu pela execução do provocador...
- Com um machado, seu João? Ele foi morto com um machado! - interveio Horácio.
- Stálin era um revolucionário prático... Não tinha preocupação com estética!
- Não está provado que foi Stálin o mandante da morte de Trotsky. - mediou Miguel - Está provado que tinha interesse no sumiço do provocador Trotsky.
- Bem dito, rapaz. O executor era doido; mora em Cuba. Não ajuda nem atrapalha a revolução no Caribe. A história não julgou o executor, julgou Stálin porque ele enfrentou os nazistas.
O velho tirou proveito feito uma ave de rapina.

Os três, sós, assuntaram...

Horácio misturou gula com luxúria.
- Ainda canto a cozinheira de seu João. Como mexe na panela... É uma maga, uma feiticeira por quem me deixaria envenenar.
- Ela desconfia de suas intenções?
- Desconfia. Do mesmo modo que Ingrid desconfia de você. As mulheres do povo têm mais células olfativas do que as filhas da burguesia, mais do que a classe média inconformada como nós.
- Cante-a de uma vez. As mulheres do povo impacientam-se com mais freqüência quando se trata de sexo.
- Estou esperando...
-... que amadureçam as condições para a revolução popular... - pilheriou Miguel.
- Que ela ponha um camarão no meu caldo. Mordo o camarão para comê-la depois.
- Não tem medo de se pôr sob a tutela de Ingrid, e vacila em fazer a corte a uma cozinheira do povo.
- Tomasa, o seu nome é Tomasa. Quero dançar uma salsa com ela.
- O que mais o preocupa, Horácio? A revolução ou o futuro que reserva a sua luxúria? - incitou-o Alfredo.
- Preocupo-me com a estética do amor. Tenho tempo para pensar nisso. Todos temos que pensar nisso. Você pensa e nega com a grossa lente dos óculos. Ingrid pensa... ou não?
- Ela se preocupa com a estética da revolução. É uma mulher sensual e age como se não tivesse útero. Não consigo vê-la dominada, urrando sob um pau viril. Parece um autômato e olha para todo operário como se fosse um pênis místico!
- O que estará fazendo nossa tutora, agora? - conjeturou Horácio.
- Fornicando sem a afetação que rouba de Rosa Luxemburgo - sentenciou Miguel.
- Está dizendo que nossa tutora é uma impostora?
- Não. Tenho confiança nela. Mas acho que esconde alguma fraqueza. Mostra-se e ao mesmo tempo se esconde. É o nosso fantasma da ópera. Ela poderia assumir-se de vez e seria uma mulher integral.
- Uma revolucionária sincera.

V
Um fauno nu

Ingrid, doce, censurou a flacidez do pênis de seu par. Montou-o, e só depois do gozo permitiu ser montada. Deixou-se penetrar com violência por vindita social. Um mês no desvario, com a cumplicidade dos duendes. Nos intervalos, presumiu um meio de voltar a São Paulo, indistinta na multidão.

Na volta ao sítio...

Raquel reouviu-os com os rapapés. Ingrid inquiriu-a sobre a rotina do sítio depois que saíram.
- Só uma vez na padaria. Me perguntaram quem eram os moços com sacolas nas costas, que tinham saído de minha casa pra pegar o ônibus na rodovia. Eu disse que eram estudantes evangélicos em retiro.
- Menos mal. Ainda assim, ruim. Chamamos a atenção.

Na lateral da casa, em declive, tinha-se acesso a uma clareira. Sentaram-se. Alice perguntou se não seria o caso de suspenderem a reunião. Fora seguida no Prado por um estranho, seguida em três quarteirões; no quarto, uma Kombi estacionara de seu lado. Dois homens desceram para pegá-la. O motorista não tivera o cuidado de desligar o motor, deixando a porta aberta. Ela entrou no portão de uma casa, esbarrou com uma mulher no quintal. Faltou-lhe idéia para forjar uma desculpa. Confessou que era estudante contra a ditadura, estava sendo perseguida por dois polícias. A mulher indicou-lhe o portão de trás, com acesso à avenida Caxangá. Na calçada, pegou um ônibus e safou-se. A mulher teria dito que em sua casa ninguém bateria em estudante.
- Tem certeza que não foi seguida até aqui?
- Tenho. Mas no caso a certeza nunca é absoluta.

Ingrid intuiu:
- Não podemos sair daqui em grupo. Seria muito arriscado. Também não vamos abrir a reunião agora. Vamos relaxar. Parabéns, Alice. Você teve iniciativa na frente do inimigo. Não se intimidou.

À noite a luz do terraço foi mantida acesa para não mudar o costume. Sentaram-se num canapé velho, na sala, sob a claridade de três candeeiros; um ao lado do outro, sem se olharem.

Ingrid atentou para a viuvez sossegada de Raquel.
- Não pensa em casar outra vez?
- Não quero lavar cueca de velho.
- E um namorado?
- Esse não lava a cueca, mas pode ser mais prático.
- Você não vai a festas?
- Vou aqui, no São João. Não danço. Me divirto na fogueira, faço promessas. Já quiseram me casar com o comissário. Deus me livre! Me obrigaria a passar graxa em seu sapato.

Ingrid bocejou. Raquel foi arrumar as camas. Ela não deixou, correu para ajudar. Foi à latrina. Deu boa-noite na volta e ordenou o cumprimento do horário. Alice deitou-se no quarto vizinho, sozinha. Horácio, Alfredo e Miguel, no último, junto à cozinha. Ingrid deitou-se para tramar contra o risco de um dia ficar viúva. Havia tempo para a confabulação com os duendes.

O vento soprou nas telhas. A casa embebeu-se de perfumes fluviais.

Dormiram rendidos ao culto do povo ribeirinho. Raquel balbuciara uma oração. Ingrid dera-lhe boa-noite para encobrir a crença incréia, com as pernas dissolutamente abertas. No hospital, a dor não permitira a visita dos duendes.

Pruriu-se nas pernas, deu-se conta do incômodo na bexiga. Levantou-se. Empurrou a porta do banheiro nos fundos, sem ruído. Estava sem os chinelos, no chão frio. Não acendeu nenhuma luz; a do quintal permanecia acesa. Não sentou para mijar, ficou de frente à latrina, olhando para baixo. Os cabelos cobriam-lhe os lados do rosto.

Alfredo levantou-se para mijar. Cruzou a porta de trás semi-aberta, inculpando os outros. No banheiro, deparou-se com ela nua, parada, com gestos vagos nas mãos. Deu meia-volta e estranhou-a por não tê-lo visto ou sentido sua presença. Ela andou em seu rumo, com os olhos fechados, movendo os beiços. A penumbra não escondeu o tufo de cabelos no ventre. Ele, duro, seguiu-a com a vista. Mijou ali mesmo, e correu para despejar o resto na latrina. Deitou-se sem acreditar na matéria de seu corpo, crendo-se ubíquo no sítio de Raquel. Vira Ingrid presumindo-a um fauno à procura de gnomos. Não dormiu para não desfazer a fábula. Em casa não tinha o costume de ir ao banheiro com os óculos. Agora, os duendes o petrecharam com as grossas lentes. Ingrid aparecera para jamais sair do transe dele.

De manhã, ela foi com Raquel comprar os pães. Quis maquiar-se. Foi advertida de que ali, àquela hora, ninguém usava pinturas no rosto. Convinha conciliar-se com os costumes, inda que contrariando recomendação da turba no sonho. Queriam-na incendiária. Alfredo acomodou-se na espreguiçadeira para não andar às tontas. Nunca se sentira tão protegido com os óculos. Horácio, com papel e lápis, sentou-se sob um jenipapeiro, fazendo enxertos no romance. Miguel não gostava de sair do quarto, não antes de o grupo juntar-se. Alice acordou tarde confiando no apoio de Ingrid.

Ingrid entediava-se quando a tensão do conluio se desfazia. Horácio decidiu sujeitar a apatia:
- Não temos arma nenhuma!
- Não. Mas estamos exercitando a perspectiva do confronto armado! - objetou Ingrid.

Doença infantil! Outra vez Horácio sentiu engulhos.

Ela considerou ter cumprido a sorte que lhe coubera. Teria que viajar para outra cidade com a mesma sorte, longe da morrinha do rio Capibaribe. Esperou dois meses até ser substituída. Viajariam sem dizer para onde, ela e o par.

Teve encontros com cada um, para ouvir o juízo de suas lições. Voltar à casa de Raquel tornara-se arriscado.

Despediu-se de Alfredo na capela do cemitério de Santo Amaro, à tarde. Saiu pela porta da frente, rumo ao portão. Deveria manter-se sentado, ele, até ela sumir sob o gradil. Levantou-se, viu a silhueta de Ingrid se amesquinhar sob as palmeiras. Custou a crer na última chance de apreciar o passo estugado dela. Gritou:
- Ingrid!

Ela ouviu e não olhou para trás.

Na segunda-feira, ele ouviu num canto a salsa dançada por Horácio e Tomasa.


Nota do Editor: Marco Alberteim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos "Osman Lins". Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas "Panorâmica do Conto em Pernambuco" e "Contos de Natal". Tem dois livros de contos e um romance.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CONTOS"Índice das publicações sobre "CONTOS"
20/12/2022 - 06h19 Aquelas palavras escritas
20/10/2022 - 06h07 Perfil
30/06/2022 - 06h40 Ai eu choro
13/06/2022 - 06h32 Páginas de ontem
31/05/2022 - 06h38 É o bicho!
24/05/2022 - 06h15 Tocaia
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.