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Contos
25/01/2009 - 16h00
Dona Nena
Risomar Fasanaro
 

Minha mãe além de ser uma pessoa que nos tornava cativos com suas histórias, preservava certa ingenuidade própria de quem levava o seu modo de vida. Casou-se cedo, quase não saía de casa, só convivia com os filhos, o marido e alguns poucos amigos, distante da capital. É possível que isso concorresse para aquela ingenuidade. Acreditava em qualquer história que lhe contassem.

Valendo-nos disso, a partir da adolescência criávamos em casa um clima de muita alegria, pois com dois filhos e duas filhas tínhamos sempre alguma história criada por nós, para animar o ambiente.

Leovil, um amigo, na verdade quase nosso irmão, pois viera morar conosco em Osasco, aos dezessete anos, para cursar o colegial, e nunca mais voltou a viver com os verdadeiros pais, tinha um cão de raça, grande, lindo. Acontece que um dia resolveu construir nos fundos da casa onde morava um salão de festas, e tudo correria bem se o cão não tivesse implicado com os pedreiros e se pusesse a avançar e a atrapalhá-los no serviço. Tornou-se impossível a permanência dele naquele espaço.

Vida (apelido de Leovil) pediu aos meus pais para ficar com o animal alguns dias, enquanto se construía o salão. Não tenho certeza, mas acho que meus pais só aprenderam a dizer não aos filhos verdadeiros. E assim o cachorro veio para nossa casa.

Como era muito grande e bravo, ficou preso a uma goiabeira que havia no fundo do quintal. O animal não nos conhecia, por isso nos estranhava tanto quanto tinha estranhado os pedreiros, e seu latido interminável continuou lá em casa. Latia tanto que ficava com os olhos intensamente vermelhos.

Minha mãe estranhou os olhos daquele cachorro. Afinal, ela sempre criou cães em casa, e nunca vira nenhum que latisse daquela forma, nem que tivesse os olhos vermelhos. Um dia em que cheguei do colégio onde dava aulas, ela me chamou, me mandou olhar os olhos do cachorro e com seu sotaque e sua conjugação verbal pernambucana, sempre na segunda pessoa do singular, me perguntou:
- Risomar, já viste como este cachorro tem os olhos vermelhos?

Olhei o cachorro e vi que realmente estavam mais vermelhos que a bandeira do PT. Imediatamente me veio a vontade de aproveitar aquilo para inventar uma história:
- Sabe o que é, mamãe, é que Vida dá maconha pro cachorro, e como ele já está há dois dias aqui sem a droga, fica assim...

Minha mãe arregalou os olhos e disse:
- Risomar, não me diz uma desgraça dessa!... Vida dá maconha pro bichinho?

E eu, cinicamente confirmei:
- Pois é, mamãe, ele dá, que é pra o cachorro parar de latir e não incomodar os vizinhos...

Como ela já estava acostumada que em nossa casa, onde havia além de mim, meu filho, meus irmãos e sobrinhos, além dos inúmeros amigos que tínhamos, sempre circulando por ali, e cada dia alguém inventando uma novidade, não acreditou a princípio:
- Estás inventando isso, só pra me assustar...

E eu me investindo de toda seriedade, reiterei:
- Não, mamãe, é verdade. Eu acho isso um horror, até já falei com ele, mas ele disse que é o único jeito de acalmar o Bundum.
- Bum o que, menina?
- Bundum mamãe, é esse o nome do cachorro.
- Isso é lá nome pra se dar a um animal de estimação... Eu sempre escolhi nomes bonitos pros meus bichinhos...

Ainda não convencida, mamãe argumentou:
- É brincadeira tua, vou perguntar essa história a Rômulo.

Imediatamente tratei de ir à casa do meu irmão que morava perto, e preveni-lo. Animado com a história, dali a um pouco ele foi lá, como se não soubesse de nada. Assim que chegou, ela foi logo perguntando:
- Rômulo, é verdade que Vida dá maconha ao cachorro pra ele não ficar latindo?

Rômulo que fala pouquíssimo, e por isso merecia dela muito mais crédito do que qualquer um de nós, respondeu:
- É sim, mamãe, ele dá maconha ao cachorro umas três vezes por dia...

E minha mãe horrorizada, perguntou:
- E isso é permitido por lei?
- Claro que não!... Se a polícia descobrir que a gente tem um cachorro aqui que usa maconha, vai dar o maior problema...

E ela, com as mãos postas:
- Virgem Maria! Minha Nossa Senhora da Conceição!
E, em tom, autoritário:
- Risomar, chame seu pai!

A essa altura, toda a família já havia entrado no jogo e exagerava os riscos que corríamos com aquele cachorro ali. Todos falavam ao mesmo tempo, cada um dava um palpite. Ninguém entendendo o que o outro dizia, o que era um hábito familiar sempre que nos reuníamos.

A cada um que chegava ela perguntava o que achava e todos a alarmavam, falavam do perigo que aquele animal nos oferecia.

Por fim ela pediu ao meu pai. Pediu é uma forma delicada de falar, na verdade o tom era quase de uma ordem:
- João, vá à casa de Vida e diga a ele que a gente não pode ter mais este cachorro aqui. Que é pra ele vir buscá-lo!

Saí de fininho da cozinha, onde toda essa discussão se processava, e liguei pra Leovil. Contei o que se passava a ele, e pedi para ir lá em casa e sustentar a história que eu criara. Vida, que faleceu há mais de oito anos, era a pessoa mais brincalhona que conheci em toda minha vida. Um contador de piadas dos maiores. Além de ser um rapaz belíssimo, estava sempre rindo.

Animado com a brincadeira veio imediatamente à nossa casa, e ela, toda cheia de dedos, não querendo magoá-lo, por fim achou um jeito de perguntar:
- Leovil, por que esse cachorro late tanto?

E ele com a naturalidade própria dos que estão acostumados a esse tipo de brincadeira:
- Sabe o que é, dona Nena, é que eu dou maconha a ele três vezes por dia, e nem ontem nem hoje eu dei. É por isso que ele está assim. Está sentindo falta da droga...

Mamãe arregalou os olhos e toda pesarosa, disse:
- Ô meu filho, leva esse cachorro embora, ele não gostou daqui não, ele não se deu com a gente não.

Foi nesse momento que todo mundo começou a rir e ela percebeu que estávamos brincando. No mesmo instante virou-se pra mim:
- Mas, Risomar, como tiveste coragem de fazer isso com tua mãe!

E não resistindo à comicidade da situação, olhou de novo pro cachorro e comentou:
- E num é que ele é até bonitinho! – E começou a rir conosco.


Nota do Editor: Risomar Fasanaro é jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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