Fazia oito horas que estava no shopping. Acompanhava a esposa que tentava fazer compras. Tentava porque em cada loja que ela entrava, ficava uma hora experimentando vestidos e calçados. Não levou nenhum deles. Dizia que não ficavam bonitos nela. Mesmo provando mais de dez peças por boutique. Até as seis primeiras lojas, Naldo a acompanhou. A partir da sétima, decidiu sentar-se no banco mais próximo ao lugar onde estivesse Sabrine. Não agüentava mais bater perna no shopping. Sabrine já não precisava e nem queria mais o marido ao seu lado, reclamando. Ela o autorizou a fazer o seu roteiro pelo shopping. Ele estava livre para ir a uma livraria, a uma banca de jornal, babar pelos aparelhos eletrônicos ou procurar alguma roupa ou acessório masculino. O que Naldo queria mesmo era descansar e comer alguma coisa. Subiu até a praça de alimentação, no quinto piso do shopping. Estava no primeiro. Encontrou o setor das lanchonetes lotado. Aliás, o shopping inteiro estava lotado. Era véspera de Dia das Mães. Voltou para a área das escadas rolantes, onde tinha alguns bancos. Sentou-se exausto. Apagou. Não viu o tempo passar. Acordou em uma cama. Não a sua, mas uma forrada com lençol de algodão puro. Recostava a cabeça em dois travesseiros forrados com fronhas do mesmo tipo. Estas tinham estampas de coração, bordadas a mão pela dona-de-casa ou a sua filha que, com certeza, costumava dormir naquele quarto, pois a roupa era cor-de-rosa e de solteiro. A cabeceira era de mogno trabalhado. Uma bela moça entrou no quarto. Pele alva, cabelos negros, olhos amendoados, também da cor de ébano. Usava um vestido azul claro de linho com renda branca como o laço de fita de cetim ajeitado em seus fios ondulados e repartidos ao meio. Parecia ter um corpo bonito, mas estava escondido sob a roupa comportada. Ela perguntou: — Você está bem? — Onde eu estou? Quem é você? O que eu estou fazendo aqui? — Eu te encontrei caído lá na varanda dos fundos. Estava delirando. Por isso eu te trouxe para cá. — Que lugar é esse? Eu estava no shopping com a minha esposa. — Shopping? O que é isso? — Shopping Center. Local onde a gente compra roupas, eletrodomésticos. Tem boutiques, lanchonetes... — Nós fazemos as nossas roupas com a modista. O papai e o meu irmão, no alfaiate. Eletrodomésticos nós compramos na Avenida Rio Branco, na Rua da Carioca ou na do Ouvidor. Agora, lanchar, nós lanchamos em casa ou na confeitaria. É isso que você quis dizer? — Mas em que mundo você... — Calma. Você ainda está delirando. Dorme mais um pouco. Eu vou falar com a minha mãe. Ainda sem entender onde estava, Naldo acatou a ordem de descanso dada pela bela jovem e permaneceu deitado no quarto que lhe parecia muito antigo. Naldo começou a desconfiar que voltou no tempo. Estava sonhando. Levantou da cama e se viu vestido com uma camiseta branca e um short de malha. Roupas bem diferentes da camisa pólo e calça jeans que usava no shopping com Sabrine. Aproximou-se da porta e ouviu a moça conversar com um homem que logo acreditou ser o irmão, pois uma mulher, que era reprimida naqueles tempos, nunca falaria para o pai que encontrou um homem na rua. A menina também parecia ser muito ingênua. Naldo ouviu a moça implorar para que o irmão mantenha segredo para os pais. O rapaz, aparentemente mais velho, prometeu e entrou no quarto. Naldo, rapidamente, voltou a se deitar na cama quando sentiu alguém se aproximando. O homem, um moreno alto e musculoso, olhos apertados pela maçã do rosto fortemente inchada, cabelos raspados nas laterais e na nuca, entrou no quarto e perguntou autoritário: — Vem cá, rapaz! Quem é você? De onde você veio? — Eu não sei. Eu estava no shopping fazendo compras com a minha esposa, quando sentei no banco, dormi e acordei aqui. — Aqui no quarto da minha irmã???? Perguntou o homem musculoso, furiosamente, puxando Naldo pela gola da camisa. — Calma, Ulisses. Eu que o trouxe para cá. Interveio a moça, preocupada. — Ele estava caído na varanda. E também disse que estava nesse tal de shopping com a esposa. — Então você tem esposa. E como veio parar aqui? Cadê ela? — Eu não sei. Deixei ela em uma boutique e subi para a praça de alimentação no quinto andar. Os dois irmãos ficaram perplexos com as palavras que ouviram do hóspede. — Noêmia, esse cara é maluco. Como é que você traz um cara desses pra cá? É a última vez que eu vou acobertar essas ações de caridade que você tem mania de fazer. Da próxima eu falo para o papai. — Ele deve ter perdido a memória. Disse a moça, já apresentada pelo irmão com o nome de Noêmia, que tentava compreender a loucura de Naldo, sem sequer desconfiar que ele veio do futuro. — É verdade. Eu não me lembro de mais nada. Esqueci até o nome da minha esposa. — Está bem, disse o irmão, resignado. — Eu vou dizer para o papai que você é um amigo meu do quartel e estava na guerra comigo. — Guerra? Que guerra? — De que planeta você veio, hein? Da Guerra Mundial, ora! Eu estou começando a achar que você é um extra-terrestre! Brincou o rapaz. — Desculpa, eu não me apresentei. Meu nome é Noêmia. — E o meu é Ulisses. — Prazer, Reginaldo. Mas os mais íntimos me chamam de Naldo. — Fique à vontade, Naldo. Eu ia te emprestar algumas roupas, mas vi que a Noêmia já fez isso. Vamos para o meu quarto antes que os nossos pais te vejam no quarto dela. — Posso perguntar uma coisa? — Claro. — Que dia é hoje? Em que ano nós estamos? — Credo. Você está desmemoriado mesmo. Parece até que esteve na guerra. Hoje é dia vinte de abril de mil novecentos e quarenta e sete. A revelação da data já seria suficiente para Naldo despertar do sono. Já era noite quando foi apresentado, como parceiro do front de Ulisses, à mãe do casal de irmãos, Dona Gertrudes. Uma senhora muito bondosa como a filha, que vivia na cozinha, exceto na hora em que Naldo foi encontrado, porque estava costurando na sala. Ela era alta, magra e tinha cabelos castanhos claros e compridos, presos num rabo-de-cavalo. Naldo já estava sentado à mesa de jantar quando chegou Seu Floriano, um senhor gordo, baixinho e com calvície acentuada. Estava apreensivo e pálido. Queria contar uma notícia importante para a família, mas ficou com vergonha de revelar na frente do cara que acreditou ser o amigo do filho. O desespero de Floriano era tanto que ele nem deu atenção a Naldo durante o jantar. Aliás, nem quis jantar. Ficou sentado na poltrona de couro, lendo jornal. Além da poltrona, havia uma cadeira tripla. Não existia televisão. No buffet ficava o rádio, daqueles de madeira, cunhada como um arco, com alto-falante amarelado. Dona Gertrudes, os dois filhos e Naldo jantaram na mesa, em silêncio. O visitante sentiu que o clima da família não estava bom. Quis ir embora. Ulisses não deixou. Naldo insistiu. Seu Floriano, querendo ficar a sós com a família, pediu ao filho para deixá-lo ir. Ulisses explicou que ele não poderia sair sozinho na condição que ele estava. Disse ao pai que ele estava desmemoriado e acabou confessando que ele mesmo (para proteger a irmã) o encontrou na varanda da cozinha, dizendo que estava em um tal de shopping-center fazendo compras com a esposa. — E como ele veio parar aqui? Perguntou o pai, assustado. — Ele não sabe. Enquanto ouvia pai e filho discutirem, Naldo começou a ter alucinações. Parecia que ia voltar ao presente. Parecia que Sabrine o acordaria para voltar pra casa, com as mãos carregadas de sacolas. Naldo teve um estalo. — É isso! Esta casa aqui ocupava o terreno do shopping onde eu estava. Eu voltei sessenta anos no tempo! Todos na casa ficaram assustados com as palavras de Naldo. Tiveram certeza de que ele era louco. Naldo ainda disse que vários prédios e casas da rua iriam abaixo para dar lugar a edifícios que tocariam no céu. O mar em frente seria aterrado para transformar-se em uma via expressa. A cidade se tornaria bastante violenta. O Brasil iria perder a Copa de 1950 no Maracanã para o Uruguai por 2 a 1, com gol de Gigghia no final, calando os torcedores no estádio, mas a seleção ainda ganharia cinco vezes o torneio. A primeira conquista seria em onze anos. Seu Floriano ficou ainda mais pálido. Desmaiou. Nem ouviu o resto da profecia de Naldo. A mulher e os filhos o acudiram. Reginaldo saiu de fininho de casa. Sentiu o ar fresco do Rio daqueles bons tempos, como o cheiro da enseada que ainda não estava aterrada. Ao lado da casa da família onde se hospedou, havia um colégio onde Noêmia e Ulisses estudaram. No outro lado da esquina, existia outra casa. A cidade era calma apesar do trânsito já um pouco intenso de bondes e carros. Naldo estava pronto para voltar ao presente. Depois de algum tempo foi chamado. Por Ulisses. Voltaram para casa e sentaram-se na varanda. O filho do dono da casa contou que o seu pai está à beira da falência e ofereceram-lhe uma boa quantia em dinheiro para vender o terreno da casa. A casa onde ele e a irmã nasceram seria demolida para a construção de um prédio de dez andares que abrigaria vários escritórios comerciais. Naldo desculpou-se por ter assustado a família e prometeu evitar falar do futuro. Ulisses não se aborreceu. Disse que o amigo tinha razão. Um dia, a casa realmente acabaria e eles teriam que ir embora. Os filhos precisavam se casar. Naldo e Ulisses atravessaram a noite conversando na varanda calma e segura de um Rio que já se foi. Sessenta anos depois, Sabrine comprava no shopping o sapato que procurava há séculos. Nota do Editor: Gustavo do Carmo é jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.
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