Era uma mulher densa, ossos fortes, músculos fartos, como os de um búfalo e, ao mesmo tempo, tão feminina quanto uma garça ao sobrevoar um lago tristonho e azul. Abraçava com autoridade todas as obrigações da fazenda, as tratações com os peões, o plantio e a colheita, os acertos de contas, a coragem de dar tiros noturnos em morcegos ousados, a recepção aos familiares, os doces de ovos. Seis filhos, o marido meio paradão, lerdo, lento, bezerro previamente desmamado, a eterna busca do colo materno na mulher esposa, que nunca se recusou a interpretar todos os papéis a ela destinados. O olhar severo, pego esse menino e resolvo com a vara de marmelo se ele não parar de gazetear com as aulas, dona Mariana nunca deixava de resolver um caso fosse ele simples ou seríssimo, fosse para falar com o colono mais humilde ou com o juiz de direito, o padre ou o prefeito da cidade que para ela era todo mundo igual e é mesmo. Os seios fartos, os olhos cor de mel denunciando a ascendência italiana, havia algo de atraente e misterioso naquela matrona de nada mais do que 48 anos, no ano em que eu nasci, ninguém dizia, pudera, caminhava de borzeguins masculinos, marrons, saias até os pés, blusas discretas, de gola e manga, detesto essas meninas que ficam exibindo o que não devem a quem não devem, me deixa como eu sou, quieta de vaidades, assim vai melhor nossa conversa. A boca vermelha ainda tinha o viço de lábios jovens, o sabor de goiaba, de ata, de abacate e das frutas que Mariana não dispensava todo dia de manhã, à tarde e à noite, degustava cada uma como se fosse a primeira ou, cruz credo, como se fosse a última. O prazer lhe escorria pelos dedos ao mergulhar os dentes numa manga madura, a alegria lhe saltava aos olhos a sentir o agridoce de um caju vermelho, a emoção se espalhava pelo semblante ao violar as uvas que suas mãos, décadas antes, haviam plantado, carinhado, alimentado, dado de beber. As mãos sim, eram engrossadas (ver sinônimo), pareciam ter mais idade do que ela, mãos postiças, estariam no corpo errado, de tanto lavar louça ficaram assim, mas porque não deixa a Rosa lavar, eu lá sou mulher de largar trabalho para os outros? E anda logo que hoje ainda tem o casamento da filha do vizinho Divino e nós vamos, João vai se vestindo, terno de risca de giz surrado e antigo, jaquetão da mais pura casemira, um calorão que só vendo embaixo dele, desbotado, surrado, quando morrer você vai com ele, tá bom demais, velho. Para ela era tudo igual e é mesmo. O trator de câmbio seco era tão antigo que denunciava ter sido vermelho apenas em pequenas partes dos pára-lamas, ia sair hoje da garagem e carregar a família até a cidade, como os trens carregaram em seu dorso de brasas os brasileiros até os meados finais do século XX. Sim porque o carro oficial da família, a charrete exibindo os bronzes do século passado brilhados pelo carreiro estava à espera de novas rodas que eram moldadas pelas mãos ágeis de Jorge Ferreiro, ainda na profissão depois de 45 anos de bigorna. Ele sabia, e se gabava disso, calcular com precisão eletrônica a inclinação de cada raio que engastava, como pedra preciosa, entre o círculo externo e o centro das girondas. E esculpia o campo que receberia os pneus como um artesão de integral sabedoria. Tudo por ali era assim mesmo, ninguém se importava muito com os futuros que ousavam entrar pela janela da televisão ou arriscavam mostrar-se nas telas dos computadores, eles batiam e voltavam, não por preconceito, mas por costume mesmo que era como se chamava o hábito de não mudar muito, ou de não mudar nada naquelas imensas (a perder de vista) antes distantes e hoje bem próximas e pouco prósperas, nada modernas mais ainda rentáveis terras de Seu João Machado. A cidade vem comendo os campos como um mar que come a praia ano a ano, esta estradaiada recorta o Estado todo, daqui a pouco riscam uma aqui em cima do pasto, outra em cima do sorgo, sei lá. A irrigação improvisada de bambus, sobre a horta, o córrego se escondendo nos fundos da casa, milagrosa água até hoje límpida como pensamento de criança, o rapaz que vem da casta da mais velha família do país a tanger os bois para os currais, repetindo diariamente os gestos inventados pelo bisavô há mais de 80 anos. Como se o filme fosse o mesmo, mudem os personagens, mantenham o cenário, o nascente, o poente, o estradão, o terreirão de café, o eucalipto e o jacarandá-rosa, dizem que tem mais de mil anos, os pastos de capim gordura, a soja, o cafezal antigo e generoso de mais de 10 mil pés, o novo canavial, os laranjais a perder de vista, os três açudes também centenários, o pequeno número de colonos que ainda se aprazem em morar lá, os bois, os cavalos, só mesmo para o serviço, os lados das plantações sazonais, haja arroz e feijão pra esse povo encher barriga e o pomar do qual ela tomava tento com uma rigidez implacável, não se perde uma fruta, não se perde uma árvore. E todos que aqui vivem têm direito a comer o que quiserem, quando quiserem e como quiserem. Da janela da sede a vista se confunde entre um jardim de todas as flores, o pomar mais adiante, jabuticabeiras centenárias, que jabuticabas fartas e doces, também tinha os abacateiros, sai de baixo, se lhe cai um na cabeça, ainda de vez, pode machucar, e também uma caramboleira e oito pés de caju vermelho daqueles bem acres e depois melados, os cajueiros têm a mania de perder as folhas e dar sustos a gente pensa que eles morreram, estão mais vivos do que nós, acaba a estação, elas voltam: primeiro vermelhas e por fim se agarram a um verde tropical impossível de descrever, as folhas dos cajueiros que, enquanto renascem, sabe-se lá porque destino universal vão trazendo alegria às lavadeiras ao ver que as nódoas de caju das roupas das crianças desaparecem como surgiram. Histórias, histórias, mas essa da mancha é verdadeira como o chão que pisamos. E lá se vai dona Mariana, encarapitada no trator que um dos filhos dirige com maestria, seu João atrás de pé e os outros cinco sentadinhos na carreta que foi lavada para a festa da cidade não me levante nem um segundo moleque que eu te corto de relho, que é melhor uma boa ameaça de relho que um tombo de carreta, desgramado. As meninas sem querer sujar as roupas, o banco improvisado coberto de alvíssimos panos de prato, devagar sempre se chega lá, nem Padre Bento não é capaz de começar uma procissão, nem missa e nem quermesse sem ver meu cabelo grisalho no meio desse povo. Devagar ia o trator e devagar corria a vida naqueles mundos tão diversos dos nossos que eles insistiam em manter. Não era teimosia, era apenas comodismo. Mudar pra que, para voltar depois um filho furado de bala perdida, uma filha estuprada, o filho drogado de correr atrás dessas modernidades ou preso porque atropelou um motoqueiro, essa porcariada da cidade, vejo os filmes das tevês a cabo e está muito bom, as crianças quando estiverem maiores podem ir pros estudos que quiserem que a fazenda vai suprir. Eles podem ir. Eu não vou porque quem tem um porto seguro onde atracar esse navio de corpo que nos emprestam por uns anos não deve desprezar isso. Saio daqui e volto, posso ir ver o papa e volto, posso até ir conhecer o Rio de Janeiro, como fui, mas depois eu volto e pronto e ponto final, cruz credo. Para ela era tudo igual e é mesmo. O quadro que se pinta é de uma pessoa retrógrada, mas Mariana passa tão distante dessa definição, quanto a verdade da boca dos políticos de mala cepa. Ela merece, sim, desde há quase meio século, quando ninguém falava disto, todos os adjetivos terminados em ista. A maior ecologista que se conheceu, sem nunca ter ouvido falar em ecologia, não se derruba um pé de árvore nesta fazenda, não se maltrata os animais, não se desperdiça nada, o lixo é reutilizado (não existia a palavra reciclado), o amor é reutilizado, o sonho é bem-vindo, a água é reaproveitada, a lenha do fogão vem só de galhos caídos e tem galho caído de sobra, amém. Dona Mariana plantava um pinheiro em janeiro para ter sua árvore de natal (nada da ladainhas ou rezas, era uma mulher prática) no fim do ano e todos os enfeites eram naturais, desde uma pedrinha pintada de urucum até uma pinha limpinha, prateada de amor, dobraduras imitando pássaros, barquinhos, ovos coloridos de amor, pequenos bibelôs de uma coleção já destruída, sementes de guapuruvús douradas pela paixão, me alonguei descrevendo a árvore porque nunca me esqueci dela, não esqueço e jamais esquecerei. Dona Mariana não resistia a uma enxurrada eivada de terra, marrom, linda, refrescante, formada de águas de chuva de verão, todos vão já para lá, seguir o caminho das águas naquela sujeira-limpa... banho de enxurrada, tomei todos que quis na vida. Subi em todas as árvores que tive e as possuí, uma a uma, com o despudor infantil de quem sabe integralmente cada goiabeira, cada mangueira, cada abacateiro (e como eles vão alto). Não agüento guardar segredo: esta senhora que, no tempo de colheita do milho, ficava semanas fazendo pamonhas realistas, curaus impressionistas, sopas modernistas e cremes prenhes de romantismo, todos os anos, era minha avó. Enfim, a avó que todo menino queria ter, pega o cavalo, moleque e vai até a venda do seu Artur buscar um quilo de sal, não se desencaminha por aí que eu tenho pressa de acabar o jantar, o vento no rosto, a alegria de estar voando no Sagüi (era o nome do cavalo mais manhoso da fazenda) com a permissão de cumprir uma ordem, perfeição universal maior não poderia haver. Podíamos nos melar nas goiabadas, mamar os doces de leite, nos empapuçar de compotas de abóbora que, secas no cal, formavam uma crosta que até hoje ninguém conseguiu fazer igual, podíamos requeijar os pães caseiros, sem contar que, distante do paladar, era permitido o banho de cachoeira, o pular de cerca, o passeio infinito que, para uma criança, os limites de uma fazenda parecem sempre infinitos e olha que aquela era grande. Grande também era o coração da hoje velha e ainda dura avó. Tudo lá era marcante e vai, para sempre, ficar tatuado em nossos corações e mentes. Como ficou bem-impressa na vida dos meus tios, a morte de um de seus irmãos, um dos seis filhos de Mariana, levado prematuramente por um mal desexplicado, uma febre mal-curada, um desacerto da natureza que malgrou por roubá-lo, aos 25 anos, da convivência dos vivos e como Dona Mariana só acreditava nos vivos, acabou por se tornar um ser que tinha simplesmente chegado ao fim do caminho, já que nunca se esmerou em pensar na existência de céu, inferno e outras vidas, fatos que considerava apenas alucinações da pequenez humana, embora respeitasse Padre Bento com seus ritos. Ela deixou que víssemos, durante uma semana e nada mais, uma tristeza fluida, tão fluída que parecia se transformar em vapor e subir aos céus em negras nuvens antes de voltar à terra, em performance de chuva de verão, sobre os habitantes daquela casa e escorregar por seus cabelos e por seus olhos em gotas calientes de farto pranto. Só assim, envolvendo a clemência de toda a natureza, poderia ser amainada a dor daquela mãe coragem, diminuído seu desespero, transportado aquele infinito sofrer para os rios e para o mar que, tenho convicção, a partir daqueles dias que se tornou mais salgado pelas lágrimas que ela vertia. Foi às cerimônias fúnebres calçando seus borzeguins marrons, de saia longa marrom, blusa marrom e com uma altivez pálida e branca, um imponderável tremor de mãos, uma ausência presente, o sabor amargo de fel que não conseguia eliminar da boca. A expressão do rosto despedaçada, essa também só mudaria depois do meu nascimento. Dona Mariana só demonstrou no rosto um fio de esperança quando minha mãe, ex-namorada do falecido, apareceu por lá dizendo que estava grávida. Por isso e por nenhum outro motivo, sou seu neto predileto, desnecessário dizer mais, sou a semente que ele depositou em vida e que desabrochou, menino-homem como o falecido, dizem que com a cara dele, minha pobre mãe viveu na fazenda até a morte, protegida como numa redoma de vidro, isolada do mundo como uma freira virgem, com direito à herança do marido que nunca havia sido, com direito ao filho e nada mais. Personalidade quem tinha era Mariana e eu cresci, claro, como a avó determinou, à imagem e semelhança do filho morto. Depois que nasci ela voltou a sorrir, a expressão de dor voou como pássaro para longe de seu rosto e o fel foi diminuindo até abandonar de vez a boca. Até pequenos sorrisos ela esboçava com minhas graças infantis e dou por terminado esse episódio. Lembrando que em minha família existe todo tipo de gente, menos mentirosos. Vale lembrar que eu tinha seis tios e tias saudáveis e vivos, mas eles se auto-baniram da fazenda e do doce e pesado jugo materno assim que puderam, indo cada um estudar num canto do Brasil e até do mundo, deixando ali Mariana, João, minha mãe e eu. Uns apareciam sempre, porque estavam por perto, outros não apareciam nunca, porque estavam distantes, uns não apareciam porque não queriam mesmo e outros sei lá. Nem interessa esse pormenor de presença nessa história porque justamente do maior ausente é que veio a novidade. De tão longe quanto a Suécia. Não é que um dos filhos de D. Mariana e seu João, que vivia explodindo a oficina de manutenção das máquinas da fazenda e sendo submetido a duros castigos por isso, ganhou um prêmio Nobel de Química? Sim, ganhou com outros três colegas de Oxford, onde estudava. O prêmio foi considerado mais inglês, é lógico, do que brasileiro, mas que ele levou, levou. Cruz credo. Mariana ficou famosa e os carros de televisão (naquela época havia duas, a Tupi e a Record) apareceram na fazenda. Os repórteres e fotógrafos dos jornais e revistas (a Manchete e O Cruzeiro) queriam fotografar a oficina que o garoto explodia e entrevistar sua mãe e seu pai. Mariana de novo fluiu lágrimas que se transformaram em vapor e choveram sobre nós, mas desta vez elas eram quase alegres que uma mãe que perde um filho nunca mais tem o olhar totalmente alegre. Ela recebeu a todos com a dignidade de uma mãe que deu seu ventre aos filhos e os alimentou com os produtos do ventre da terra, um por um dos jornalistas com seus borzeguins marrons, saias longas marrons (tinha várias idênticas), uma altivez pálida e branca, desta vez com os cabelos presos à nuca por um pente espanhol de madrepérola e um batom levíssimo enfeitando os lábios, como eu já disse antes, que ainda demonstravam a sensualidade de três décadas atrás. João vai vestir seu terno de casimira de risca de giz para sair no retrato e na televisão bem bonito, não é porque perdemos um filho que o outro tem que ter pais feios ou mal-arrumados. Guardo aqui dentro de mim a dose correta de orgulho deste e de todos que estão vivos, não porque estão vivos, mas porque aqui nasceram e aqui cresceram e saberão distribuir ao mundo a honestidade e o caráter que aqui legislamos. A avó, que vergou mas não quebrou, recebeu um convite dos reis da Suécia para a cerimônia de entrega do prêmio. Encomendou para o meu avô um novo terno de risca de giz, estilo jaquetão de quatro botões, a tradicional camisa de cambraia de algodão, a gravata, meias e sapatos pretos. Ele cortou o cabelo no mesmo barbeiro de sempre. Mariana enxugou os olhos, comprou novos borzeguins marrons, desta feita de pelica brilhante. A indelével saia longa marrom foi mantida, a blusa era nova, mas da mesma cor. Um mantô de lã de carneiro a ajudou a enfrentar o frio de Estocolmo, assim como o avô foi ajudado por uma capa de lã preta emprestada pelo padre Bento. Nada precisava mudar. Para ela era tudo igual e é mesmo. Aplaudiu de pé, as mãos orgulhosas e calejadas, o feito de seu terceiro moleque. Danado, ele, gostava de sentar no varandão e jogar alpiste, para ver os passarinhos virem se chegando. A mãe nunca permitiu uma gaiola lá, os bichinhos não cometeram nenhum crime para irem presos, cometeram? A rainha e o rei da Suécia a cumprimentaram pessoalmente. Até seu João ganhou, atônito, seu cumprimento. Estava tudo certo. Pronto. Mais uma vez, cumprira seu dever de mãe. Quando voltou, era tempo de vender a colheita de café. De novo com os surrados seus borzeguins do dia-a-dia, Mariana, como se da grande sala (quase sem móveis) da fazenda, nunca tivesse saído, sentou-se na cadeira de três pés, que girava e recostava para trás sob o seu comando, e recebeu os compradores. Abriu a escrivaninha de mais de cem anos e deu início à negociação. Nota do Editor: Laís de Castro é jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Hoje é diretora de redação da revista Dieta Já, da Editora Símbolo. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e agora lançou seu primeiro livros de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, pelo selo ARX (Siciliano).
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