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Contos
19/11/2008 - 05h43
Ponto final
Gustavo do Carmo
 

Na volta para casa decidi pegar o ônibus no ponto final. O abrigo estava lotado. Não tinha lugar para me sentar. Estava morrendo de cansaço. Não quis esperar em pé. Estava muito quente. Mesmo com o sol assando o meu couro cabeludo, preferi andar. Parado ele incide mais sobre a minha cabeça. Andando, pelo menos, vou uniformizando a fritura dos meus miolos.

No ponto final, além de poder ficar debaixo de uma marquise, poderia pegar o ônibus vazio, o que não aconteceria se eu pegasse de onde eu estava. Até a última parada ainda havia mais três pontos no caminho.

Inicio a minha jornada de vinte quilômetros rumo ao ponto final. Já conheço esse trajeto. Aliás, acho que nem chega a ter vinte quilômetros. Talvez cinco. O calor e o cansaço já bagunçam o meu raciocínio. As minhas contas.

Quando acabo de atravessar a primeira esquina, passa o ônibus que me leva de volta para casa. Passa direto, em alta velocidade. Sigo o meu caminho.

Passo por uma lanchonete. Pessoas comem sem pressa, como se vivessem ali. Eu também poderia parar para comer ou beber uma água de coco. Mas estava com pressa. Queria chegar logo em casa e me livrar daquele calor na minha cabeça.

Na segunda esquina vejo uma criança aparentando uns oito anos. Fazia manha. Chorava e esperneava. Provavelmente queria algum brinquedo. A mãe, impaciente, esbravejava:

- SE VOCÊ NÃO CALAR ESSA BOCA, EU TE DOU UMA SURRA!!!!

Pensei em parar em um abrigo próximo a cena. Gostaria de conferir se a mãe cumpriria a promessa. Muita gente torcia para isso. Algumas senhoras tentavam demovê-la da idéia. Se a mãe bateu ou não na criança? Não sei. Segui em frente.

Logo vi a loja de brinquedos que foi o pivô do escândalo da criança. Os funcionários ainda observavam na porta, atônitos. Poderia parar para perguntar-lhes o que houve. Mas isso não era da minha conta. Segui.

A partir da terceira esquina, avistei outro ônibus da minha linha. Acabei voltando para o ponto próximo de onde a mãe ameaçava bater na criança. Não havia ninguém no abrigo além da mulher e do menino que chorava. Parecia mais calmo. Nem sei se tinha levado a tal surra ou não. Para mim não importava. O ônibus que eu precisava chegou. Mas não parou. Eu estava no ponto errado. Continuei o meu caminho.

Repeti a passagem pela loja de brinquedos e a terceira esquina, onde eu tinha avistado aquele ônibus que me fez voltar. Continuei o caminho.

Na frente de um banco vejo um mendigo abaixar as calças e, com a apoteose apontada para quem quisesse olhar, fazia o que os políticos fazem com a nossa cidade, o nosso estado. Nosso país.

Mais pra frente, um vendedor de relógios abria o seu casaco e me oferecia as suas mercadorias, que brilhavam com a luz do sol. Eu nem dei importância. Também não reparei que ele estava nu. A mocinha de trás percebeu. Deu um grito e chamou a polícia aos berros de TARADO!! O policial militar desceu o cassetete no ambulante maluco. Já sem o meu testemunho. Eu estava longe.

Olho para outra calçada e vejo um turista fotografar um mendigo. É por isso que o Brasil não vai pra frente. As nossas mazelas são glamurizadas. Me deu vontade de atravessar a rua e mostrar para o turista a verdadeira maravilhas do Rio de Janeiro que estavam na rua paralela: a praia. Fiquei na minha. Segui o meu caminho.

Duas esquinas depois eu vi uma multidão cercando alguém ou alguma coisa. Dando mais alguns passos, deu para ver um homem caído no chão. O sangue se empoçava e escorria pelo asfalto quente. Nem quis saber se estava morto ou não. Continuei andando.

Já estava a umas três esquinas do ponto final quando avisto outro ônibus parado no semáforo logo no final da calçada. Atravesso rapidamente com o sinal aberto. Quase sou atropelado. Não dá tempo. O semáforo abriu e o ônibus seguiu o seu caminho. E eu o meu.

Passo por uma senhora com o rosto ensangüentado, chorando, dizendo para policiais que foi assaltada. Na esquina seguinte, ouço tiros. Parece ser um assalto. Fico com medo. Paro numa lanchonete e compro um refrigerante. Com a cara e a coragem, sigo em frente. Ando a passos rápidos. Apesar do meu cansaço. Dois ladrões quase me empurram e entram na rua transversal. Os policiais, também. Era um assalto no supermercado do outro lado da rua.

Consigo fugir das balas perdidas. Consigo chegar ao ponto final. Não consegui pegar o ônibus que estava parado, me esperando. Algo pesado caiu sobre mim. Pesado como uma marquise.


Nota do Editor: Gustavo do Carmo é jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

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