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Contos
16/11/2008 - 07h03
Repulsão
Marco Albertim
 

Desgostou-o ver a mulher de seu pai não entrar na sala da UTI. O velho estava deitado, inconsciente, os olhos fixos em lugar nenhum, um respiradouro no nariz, o pescoço dilatado. Ela o olhou da porta, mas logo o enfermeiro cuidou de fechá-la. Sem queixa, com alívio disfarçado, ficou olhando pelo vidro, um retângulo em que apenas dois olhos podiam dar conta do interior da sala. Ainda assim, segurou no braço do enteado sem saber o que dizer; queria amparo para mostrar que com esforço suportava a dor. As irmãs, atrás, eram subalternas a seu carisma familiar.
- Entre, Toinho. Vá ver seu pai.

Nunca fora de afagos com ele, tratara-o por Antônio Mamede. Conviera juntar os nomes, conferir respeito, encobrir o desvelo que não sentia. Na hierarquia da circunstância, ele não se fingiu de inferior; não precisou, fora assim toda a vida. Desjeitoso, cruzou a sala rumo à cama do pai; olhou para os outros leitos, com velhos empapuçados, em pior estado. Distraiu os sentidos, para ter o que dizer se lhe perguntassem sobre as acomodações. Temia olhar de perto a deformidade no rosto do pai, depois do desmaio; não tivera coragem de olhar a face encovada da mãe defunta, com medo de não tirar da memória os traços da moléstia que a matara. Agora, tentou mostrar-se capaz de descrever com frieza a aparência do doente. Cruzou os braços perto do leito, hesitando em pôr-lhe a mão na fronte; não ajudaria no recobro da memória, mas daria conta da estima que tinha pelo pai. A madrasta deveria estar ao lado do marido, ajeitar-lhe a mecha do cabelo, segurá-lo no pulso; não viera para não sentir o cheiro de éter. Manteve-se, Antônio Mamede, frio, os olhos fixos nos do pai, inquirindo-o do rigor com que fora tratado. Os olhos nada diziam com as órbitas mortas; a boca semi-aberta pedia socorro, perdão pelos insultos. Comoveu-se; se chorasse? A madrasta seria testemunha de seu afeto. Não chorou, não sentiu vontade porque nunca suspeitara ter que se submeter à circunstância. Ela ficou do lado de fora, cismando nos últimos imprecisos trinta anos. Ele nunca presenciara um gesto de carinho dela com ele; só a menção do nome de família, por ser um brasão sonoro. Conformara-se à solenidade que o nome do marido lhe conferira.

Voltou para o corredor, certo de que cumprira um rito. A respiração ruidosa do doente acompanhou-o, vazaria em seus ouvidos pelo resto da noite; sentira repulsa com os respingos de secreção. A impressão de agora se juntava às imprecações do passado. Ainda que moribundo, o pai lhe inspirava terror.
- Ele está com os olhos abertos, mesmo sem olhar para nada. O pescoço está inchando e respira com dificuldade.

Ela quis saber detalhes, a cor dos olhos, as olheiras, as mãos. Respondeu como pôde, ele, insuficiente. Fora chamado de repente para ver o pai, vítima de doença desconhecida. As irmãs dela o cercaram, dispostas a flagrá-lo num debique de voz. Salvou-o a chegada do irmão mais novo da madrasta:
- O Seguro ainda não autorizou o internamento; diz que está em contato com a matriz. Deu um prazo de 24 horas.

Ela deu as costas ao enteado, cruzou os braços, baixou a cabeça. Se o irmão a retivesse em seu ombro, sentir-se-ia aliviada por não ter que pensar no marido dando sinais de morte, no hospital exigindo um cheque de caução para o internamento. O irmão desconfiou do rogo, fez-lhe a vontade, dando conta do máximo que podia fazer pela irmã mais velha.

Dez da noite. Nenhum médico fora capaz de dizer o diagnóstico. Por decisão dos médicos, o doente teria que ser levado a outro hospital, com mais equipamentos para um diagnóstico rápido. Ela assinou um cheque pré-datado da conta conjunta que mantinha com o marido; assinou na frente das irmãs. Não era um valor alto, mas exorbitante aos olhos das irmãs acostumadas a filas de planos de saúde módicos. Fingiram não se chocar. A soma era bastante para encher a despensa de cada uma por um mês.

Foi seguida até a saída do hospital. Mantinha os braços cruzados, um lenço na mão direita; não tinha coriza e fingia-se indiferente ao éter. Em volta, as irmãs cuidavam para que não tropeçasse no pátio. O marido foi posto na ambulância. Seguiram no carro de Bia, assim a chamavam, dirigido pelo irmão, ao outro hospital. Antônio Mamede foi na ambulância, ao lado do motorista.
À meia-noite os médicos chamaram a família para o diagnóstico, o primeiro diagnóstico; ainda não estavam seguros do que acontecera.
- Tudo faz crer que foi uma isquemia. Não sabemos ainda se foi cerebral ou cardíaca. Ainda depende de uma série de exames. Não podemos adiantar nada. Ele está na UTI cardiológica, monitorado por uma equipe e pelo que há de mais moderno em equipamentos.
- Quando nós vamos ter mais notícias dele!? – quis saber Bia.
- Nós emitimos dois comunicados por dia: um às 11 horas e outro às 16 horas. A família deve aguardar.
- Vai deixar seqüelas? – insistiu.
- Não podemos adiantar.

Antônio Mamede, atrás, esticara o pescoço para ouvir o médico. Ela, com as mãos no balcão frio de mármore, arranjara como pôde as maneiras, urdindo tiques, forçando-os.

Ele foi para casa, preguiçar o juízo. Imaginou-a sem dormir, apreensiva com o que o médico ocultara. Antes de se deitar, tomou duas cervejas para ficar com o lembramento mole. Intuiu, com acerto, que em vez de tomar chá, como fazia quando se sentia bem, ela bebia café, duas xícaras de café quente; depois, tensa, fumando como não fumara na frente do marido, sentindo prazer com as baforadas livres da insônia dele. Deitada, olhando para o canto vazio da cama, recusou-se a julgar a si mesma para não se flagrar com remorsos por não estar rezando pela cura.

Antônio Mamede, que amolecera a intuição sob o efeito da cerveja, não desconfiou que ela sentiu uns restos de sono, teve o pesadelo de rever o marido deitado do lado, inteiriço, com os olhos duros fitos em algum lugar, sem vontade de ir à latrina.
- Não! – gritou sem querer.

As irmãs acorreram. Pediu que uma deitasse na mesma cama. As duas não quiseram. Era onde ele, achacado, se deitara. A solução foi dada por ela mesma:
- Eu vou deitar com vocês. - Foi para o quarto vizinho, onde havia cama sobrando.

Antônio Mamede, distante, distraído com o próprio sono, surpreendia-se por não ouvir o sussurro vaporoso da respiração do pai.

De manhã, ela foi a única a não comer; bebeu mais café para tornar o cigarro agradável.

No hospital, a espera pelo primeiro comunicado. Até 11 horas, especulou sobre toda sorte de doenças, evitando falar em cardiopatias. Convinha iludir a si própria, e tinha medo que desconfiassem de sua senilidade precoce. Antônio Mamede suspeitava, nauseado com a conversa sem trégua da madrasta. No balcão da UTI, foi-lhe dada prioridade para a leitura do primeiro comunicado. Nada além do que ouvira à noite. Informações vagas, sem indicação de recuperação nem indício de coma irreversível. “Paciente grave. Não dá sinais de melhora nem de agravamento.”

Bia queria sair sem ter para onde ir. Parou de falar para fruir os agouros de morte. Nunca se sentira assim. O enteado olhava-a com enjôo no abdome. Inda que também o mirasse, era só um efeito ótico, impalpável. Nunca lhe pedira auxílio. As irmãs, apáticas, seguiam-na por dever de família. O alívio de Antônio Mamede era a certeza de não figurar na roda de sujeição da madrasta. Bia sabia que as irmãs eram incapazes de um peido na sua frente, e tinha medo de perdê-las. Obedeciam-na resignadas, deixando escapar um comentário atrapalhado. Ela não respondia, sabia que para tê-las sob sua tutela, tinha que lhes dar fôlego. Uma das irmãs, não sendo viúva, vivia só, deixada pelo marido; tinha quase a sua idade e experiência para insinuar conselhos sobre uma viuvez serena.

O médico autorizou visitas, dez minutos para cada parente. Bia foi a primeira. Antônio Mamede reparou-a no ato de vestir a capa de plástico. Repararam-se, vigiavam-se, cada um no ofício de afim desventurado. Viu o marido com o rosto inchado, os olhos abertos, em direção incerta. Perto, julgou-se capaz de subjugar o medo. Os outros pacientes, com visitas, nenhuma horrorizada. Uma moça, poucos metros dali, levantara o lençol que cobria a mãe com câncer; com um pano, enxugava a urina que a velha não conseguia conter. Bia segurou na mão do marido, achou impossível alguém se manter vivo com o corpo tão gelado. Ele fungava, o rosto para um lado, o beiço inferior arriado. O ruído da respiração misturando-se com o da engrenagem dos aparelhos.

Ela acostumara-se à beberagem diária do marido. Depois do terceiro uísque, ele trocava as sílabas, deixava cair a baba; com o lenço, enxugava a boca; quando não, molhava o carpete. Ela reclamava, depois se resignou com o trabalho de limpeza da empregada. A empregada não se acostumou, sugeriu lenços de papel ao lado da garrafa de uísque, sob o pratinho com azeitonas.

Bia tirou da bolsa dois lenços de papel, do mesmo que pusera sob o prato com azeitonas. Enxugou seu lábio inferior, esperou que reagisse, desse sinal. O rosto dele balançou mole.
- Pode se aproximar mais – disse a enfermeira, para afastar medos.

Balbuciando, desconfiou das cismas do enteado. Não o viu, achou que era o marido mesmo que a espreitava, com o ciúme que nunca lhe dera trégua. Os médicos não sabiam dizer se perdera de fato a consciência; podia estar arruinado ou sob o estupor. Dos olhos bem abertos, não desciam lágrimas, e estavam molhados. Sentira raiva, ela, de sua estupidez, agora sentia pena. Os olhos dele infundiam pena, pediam socorro a ela. Antônio Mamede, do lado de fora, presumia o retorno da madrasta com o rosto crispado, o lenço ocultando metade da face.
- Está na hora – lembrou a enfermeira.

Saiu chorando. Convinha chorar na frente dos outros. Quer um confessor, pensou Antônio Mamede.

No terceiro dia, o Seguro não tinha enviado a autorização para o internamento.

Antônio Mamede misturara à náusea o cheiro do éter. Descia para o pátio sem avisar. Deixara de fumar; e quando voltava, desculpava-se de ter fumado. Bia queria conversar, não dirigia a palavra às irmãs, tinha de cor a resposta das duas. Intrigava-se com a mudez do enteado. Ele suspeitava, tinha certeza de que era objeto das suspeitas da madrasta de que ele a culpava pela doença do pai. Ela deu mais um cheque de caução ao hospital. Falou alto para a notícia não escapar ao juízo do enteado. Paga as despesas e purga-se de culpas, persuadiu-se ele. As somas foram crescendo. Nenhum diagnóstico definitivo. Impossível estimar o tempo do tratamento. No quarto dia, a autorização. Os boletins médicos nada acrescentavam. No quinto, Antônio Mamede voltou a fumar em definitivo. Ela trouxe agulhas e fios de lãs para fazer crochê, catando terapias para a hora incerta. Quando a administração do hospital queria entregar-lhe algum documento, permanecia sentada na sala de espera, e pedia a Antônio Mamede para ir em seu lugar. Ele queria sair correndo, não ouvir a pungência teatral da madrasta. Nunca o tratara com inflexão na voz; ele sentia agulhadas no estômago. Não ia, dizia que o funcionário faria a entrega. O juízo dos dois, em bulício, era perceptível às irmãs, à sobrinha, testemunha da transmissão da herança deixada pelo doente. Há um mês os dois eram seguidos pelo espectro da herança. Enrustiram-se em respeito ao iminente desmaio do velho, ranheta, à cata de insetos nos quartos, no corredor. Ela telefonara para o enteado, para tratar dos imóveis que cedo ou tarde, mais cedo que tarde, o marido deixaria aos filhos.
- Eu sou meeira dele, independente de qualquer coisa – convinha a seus desígnios lembrar seu primado na herança. – Mas há você e seu irmão e meus dois mais velhos.

O meio-irmão, Mamedinho, vivia no Rio de Janeiro, onde trabalhava, tinha família. Não viera visitar o pai, mas prometera dar um jeito. Os mais velhos, filhos do primeiro casamento de Bia, não tinham direito à herança. Ela queria incluí-los. Antônio Mamede e Mamedinho teriam que renunciar à parte do legado em benefício dos dois.
- Nós resolvemos passar tudo para o nome de vocês – continuou -, para evitar que futuramente estejam brigando pela herança.

O marido, internado numa clínica para se desintoxicar do uísque, recusara-se a falar dos bens para não admitir a morte próxima. Era visitado por Bia, a sobrinha e Antônio Mamede. Meio-lesado, pedia dinheiro para tomar cerveja; queixava-se de outro ocupante do quarto porque, conforme ele, usufruía de seus bens sem permissão.
- Mamedinho é inevitavelmente herdeiro. São cinco imóveis: dois apartamentos no Rio de Janeiro, este aqui em Recife, uma casa em outro bairro e outra na praia. Você vai assinar procuração dando poderes a Mamedinho e a meu outro filho sobre os apartamentos do Rio; o mesmo com relação à casa do outro bairro e à da praia. E este apartamento que nós moramos, ficará com você.

Antônio Mamede, com a náusea latente, concordou. Fora citado como último herdeiro, ele, o primogênito; inda que não criado pelo pai. Assinou duas procurações, assinou sem que a madrasta lhe desse a propriedade do apartamento. Conteve-se à frente da sobrinha, testemunha dos traslados.

Bia, com pouco trabalho, despesas, manipulação da razão de Antônio Mamede, teria as coisas como há anos urdira, tudo sob seu arranjo; com a fiança de um esperto diabinho. Tão confiante, não se dando conta do estresse por causa do alcoolismo do marido. Duas vezes por semana, nadava para corrigir uma das pernas, menor em conseqüência de cirurgia nos quadris. As irmãs, a empregada, a sobrinha, todos em torno dela se juntaram para lhe fazer as vontades. Uma corte sem requintes, com obediência, vigilância. Antônio Mamede receava ser agregado.

Comprometeu-se, então, de ir à casa do enteado. Teria ele que assinar duas novas procurações, renunciando à casa do bairro afastado e a outra na praia. Ela iria, conforme disse, junto com o filho.
- O cartório já aprontou os documentos. Amanhã eu e Carlos passamos aí para você assinar.
Ultimato. Ele ainda arriscou:
- E quanto ao apartamento?
- Agora não. Só daqui a um ano.
- Como daqui a um ano!?
Ela gritou; um grito e teria outra vez as coisas sob seu mando:
- Você não confia em mim! Neste país ninguém confia em ninguém; este é o mal. Passo aí para você assinar!

Podia tê-lo chamado a seu apartamento, onde, de caso pensado, teria reunido a corte para forçá-lo a assinar. Mas sabia-o tão irascível quanto o pai. Resolveu dar-lhe um puxão de orelha pelo telefone. Sequer esperou a resposta, desligou sem acertar o fone no gancho... prrrrprrrrprrrr.

Bia nunca se despedira do enteado, sem insinuar-lhe o tratamento de filho. Ele perdera a mãe, ela julgara conveniente ataviar-se com modos maternais. Sabiam que interesses distintos os separavam, urdiam como seria a vida se um não fosse o estorvo do outro.

Certa vez, quando brigara com o pai, ele saiu acreditando jamais voltar ali. Foi se despedir dela em seu trabalho. Não tinha nada no bolso para deixar como lembrança. Lembrou o isqueiro Zenith na algibeira, tirou-o, deu-o de lembrança. Ela chorou comovida, impotente para mudar a opinião do marido. Fora há trinta anos. O gesto esboroou-se entre maquinações pecuniárias.

Agora, com o desterro definitivo da memória, dos escassos afagos que trocaram, zunia-lhe no ouvido o estrondo do telefone. Demorou alguns minutos, e ligou para seu advogado.
- Nenhum herdeiro pode ser deserdado. É ilegal. Quanto às procurações que você assinou, você pode assinar outras desautorizando as primeiras.

Dia seguinte, telefonou para Bia. Pela primeira vez falou com severidade:
- Não assino mais documento nenhum!
- Você foi ao cartório se informar com o tabelião?
- Não! Fui falar com meu advogado. Vou providenciar a nulidade das procurações que assinei!
- Mas!...
- Há mais de trinta anos você é a mulher de meu pai. Sempre a tratei com respeito. Até mesmo pelo telefone!
- Você me desculpe. Eu estou muito estressada. O problema de seu pai...
- Eu não sou o responsável pelo seu estresse. Tenho certeza que você nunca desligou o telefone na cara de um de seus filhos!
- Desculpe...
- Posso até aceitar sua desculpa, mas por causa de Mamedinho, que apesar de ser meu meio-irmão, é meu irmão.
- Já que você está com advogado, vou providenciar a doação do apartamento para você. Você assina a procuração das duas outras casas?
- Não precisa pedir minha palavra. Já sou honrado pelos meus amigos.
O reencontro se deu dali a dois dias. Os papéis, prontos no cartório. Antônio Mamede chegou como de costume, com uma bolsa no ombro, onde pusera compras. Ela, sem a fiança do diabinho, elogiou a elegância da bolsa; rapapé sem graça, vão. Faltava a assinatura do marido. O notário, que os conhecia, disse que passaria na clínica para colher a assinatura. Antônio Mamede, advertido pelo advogado, ponderou que alguém poderia questionar a assinatura do pai, porquanto estivesse doente.
- Quem vai questionar, meu filho!? – perguntou ela, e emendou – Antônio Mamede continua desconfiado de mim. Eu não providenciei logo a doação do apartamento para ele, por causa das despesas.

Ele não respondeu. A sobrinha olhou para baixo, sem interesse.

Não deixaram para trás a birra. Queriam a todo custo outra rotina sem contusão na alma, mas o indício de que por longo período o remorso os seguiria, tirou-os da chance de um sono sem interrupção. Bia não lograra o propósito de esbulhar o enteado. Antônio Mamede prendeu uma dezena de xingarias na garganta.

Quinze dias de internamento. O requinte do hall da UTI, sem cheiro de clorofórmio, os cafés, chás, bolachas, amizades recém-criadas com parentes de enfermos, infundiam crença na cura. As irmãs de Bia, incrédulas, conluiadas. O doente, mais inchado, o sangue coagulado nas pernas, nos pés; as unhas tornaram-se escuras, pretas. Quando Bia ia vê-lo, arriscavam:
- Pra mim é uma questão de dias...

No vigésimo dia, o diagnóstico. Quando estivera na clínica de repouso, ele caíra da cadeira no meio da refeição. Comia feijão, arroz branco, legumes e galinha cozidos. Enfermeiros e médicos suspeitaram de trombose. Já agora na UTI, com um dreno nos pulmões, esguichou espessa tinta escura de anos de cigarro; junto, um caroço de feijão. Quando engolira a comida, o grão, em vez de ir ao estômago, fora para o pulmão. Sem oxigênio na cabeça, sofreu lesão no cérebro. Os médicos, certos da morte, nada adiantaram, reiterando a complexidade do caso. Bia, as irmãs, a sobrinha, Antônio Mamede e agora Mamedinho perderam o interesse nos boletins. Visitavam-no às tardes. Espreitavam a morte e não admitiam. Entretinham-se no café, na televisão. Passado o choque, ela voltou ao crochê como se estivesse no sofá familiar. Não dirigia o carro. Pouca atenção lhe davam. Desculpava-se por nada, para recuperar os cuidados sobre si. Sem esperanças, insistia em enganar-se. À sobrinha, que chamava de filha com afetação morta, disse:
- Beta. Quando ele sair do hospital, é você que vai dirigir o carro. E ele vai do seu lado!

Antônio Mamede admitia com os olhos a demência da madrasta. Sem pai, ele, com uma madrasta senil.

Um parente de paciente que se recuperara de uma lesão, contou-lhe a saga do doente na UTI, a remoção para o quarto comum. Ela achou que era um aviso sobrenatural.
- Às vezes Deus avisa quando vai fazer o milagre!
- Vamos, Toinho. Vamos comigo visitar essa pessoa.

Antônio Mamede não foi, ficou no lugar, calado. Ela seguiu só, deixando visitas e parentes desconfiados de seu juízo baldio. Voltou dizendo que o paciente estava bem, conversando, consciência cheia. Falava como se estivesse se referindo ao marido quase morto. Depois da excitação, prostrou-se no crochê, quieta, sujeita ao juízo que faziam de si. Perguntou ao enteado se tinha esperança. Ele nada disse. Ela baixou a cabeça, fez uma careta, chorou. Ele não podia consolá-la, não tivera arroubos com a madrasta.

Mamedinho, evitando a mãe:
- Ele está morrendo.
- Vai ter falência dos órgãos – completou Antônio Mamede.

Também brigara feio com o pai, o caçula. Até se dar conta da gravidade da doença, julgava infundada a severidade com que fora tratado. Quando percebeu que ficaria órfão, alternou tristeza com choro, com remorsos por ter contrariado a educação paterna. Confessava à mãe. Ela, presumindo-se vítima sem queixas:
- Mamedinho não tem culpa de nada! Você mesmo, Toinho, morou com seu pai e teve desentendimentos com ele. Nem por isso é culpado de nada. Eu vivi com ele mais de trinta anos, tive alegria e também sofri. Mas não tenho nada do que me queixar. Nada!
Antônio Mamede, movido pela genética paterna, queria sair dali. Foi o primeiro a saber da morte. Estava em casa, na manhã do vigésimo oitavo dia. Telefonou para o hospital, receando que tivessem lhe ligado com notícia de morte e, com o sono, não tivesse ouvido. Informaram-lhe que o doente evoluíra desfavoravelmente. Ligou para Mamedinho:
- É um modo de dizer que ele morreu.

Depois, voltou a ligar para o hospital. A atendente, evadindo-se, pedia para ele ir ao hospital.
- Evoluir uma ova, minha senhora. O homem está há 28 dias em coma, descerebrado, e a senhora vem me falar em “evolução desfavorável”! Não quer me dizer porque está no telefone, cumpre ordens. Mas pode falar, ele morreu, não foi?

Repetiu a pergunta três vezes. A atendente, sem poder desligar, respondeu:
- Foi.

Mamedinho entrou na UTI sem avisar, sem o jaleco de plástico. Saíra em disparada. Não deu tempo ver o pai vivo... ou morto-vivo. Viu a morte, soluçou até chorar convulsivo. Bia e a irmã chegaram. Tiraram o pijama do morto, vestindo-o com calça e paletó da mesma cor, há muito não usados. Ela lembrou de quando o vira naquele traje, distinto, sedutor. Chorou mais que o filho, surpreendendo-se com a abundância do choro.

Antônio Mamede chegou para o velório. Viúva e filho cumprimentados com igual abundância. Pesares sinceros, outros remedados. Antônio Mamede ficou num canto, ordinário. Não fora criado pelo pai, ninguém lhe manifestou pesar. O médico da clínica, um enfermeiro e uma enfermeira, estes dois com um brim desbotado, asseado – quanta dignidade na linguagem -, cumprimentaram-no com aperto de mãos sem rapapés.

Sobre a coroa de flores, faixa com os nomes da viúva, dos filhos. O nome de Antônio Mamede estava por último, como no inventário. Antes de fecharem o caixão, os parentes foram chamados para rezar. Antônio Mamede ficou no mesmo lugar. Não sabia rezar, não queria ser figurante.
Bia, segura num dos braços por outra mulher, manteve-se discreta no décor de viúva paparicada. Traiu-se na presunção, quando, amparada, deixou escapar:
- Estou bem. Companheira estou sendo até o último momento.

No cemitério, Antônio Mamede juntou o pesar da infância distante com a náusea.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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