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Contos
09/11/2008 - 05h50
Um presente para o papa
Marco Albertim
 

O sino zuniu na torre seguidas vezes para a missa do domingo.

Alípio, o sacristão, aprendera a ajudar a missa, sem nunca ter gosto por rezas. A mãe o instigara com rogos e ameaças, para ter nos passos, ele, o prumo de religioso. Quando menino, ela prometera à santa que, se o filho ficasse bom do impaludismo, seria padre. Alípio ficou bom. Morando com a mãe e o pai, no abrigo da Misericórdia, por mercê do padre, compeliu-se entre orações, missas, leituras da bíblia. Tinha inveja dos outros meninos. Obedeceu aos pais até os dezoito anos. Deixou de puxar o sino porque um cisco caiu-lhe no olho; removeu-o com a ajuda da mãe, mas a inflamação durou uma semana. Teve licença de não puxar a corda um mês, pelo menos; não mais voltou.

Conservou o gosto pelos santos nas paredes da igreja. Mirava-se nos olhos das imagens, crendo-se o escolhido para a concessão do gosto de moldar estátuas com rosto de anjo e armas de cangaceiro.
- Onde já se viu isso, menino! Cangaceiro não é anjo! – a mãe imprecou.
- Morando na igreja e sonhando com cangaceiro... Deixou de ler as escrituras? – interrogou-o o pai.

O velho Higino cozia-se o ano inteiro no forno da padaria, no fabrico de massas. No carnaval, fazendo máscaras com papelão, vendi-as. Zefinha, a mulher, lavando roupas por encomenda, cosendo bonecas de pano, cantando no coral da igreja. Alípio tirou dali o gosto por bonecos. Entranhou as unhas no barro vermelho; inda que afastado da batina do padre, a mãe, o pai forçaram-no a moldar conforme as imagens tiradas da bíblia. Queriam-no assim, para dar cobro à promessa não cumprida de fazer do filho um padre; para mostrar ao padre que a mercê do abrigo seria recompensada com a devoção do filho.

Higino morreu dois anos depois de Alípio ter deixado a sacristia. Zefinha chorou feito uma serva lamurienta; perdera o marido, teria que sair do abrigo. Alípio dera sinais de insubordinação, com estatuetas ranhentas. O padre as espreitara com propósitos inquisitoriais. Zefinha, velha, queixava-se com Alípio; logo morreria, tinha medo de reencontrar com o marido, dizer-lhe que o filho não se emendara. Herdou de Higino umas economias; ela mesma juntara outras de gorjetas das patroas. Alípio entrara no comércio de vendas de suas estátuas. Juntaram tudo, compraram um mocambo na beira do rio; foram morar junto a pescadores. Alípio não disse à mãe, mas festejou de seu modo; tiraria dali a inspiração para suas imagens rebeldes.

Zefinha morreu. O filho chorou mas nem tanto, sentindo alívio por não ter mais a mãe espreitando os traços de seus anjos de barro.

Um mês antes do natal, mirando a imagem de Cristo na igreja, Alípio voltou para casa com o propósito de moldar um papai Noel nordestino. Juntou barro muito. O piso da sala, num canto da parede, cobriu-se de um monte da argila vermelha. Derramou água por cima. Com o calor, o barro poderia secar, endurecer. Na janela, na porta da frente, a vizinhança juntou-se para ver a obra surgir das mãos escuras de Alípio. Teria que fazer tudo num dia, porque no seguinte, a massa seca rejeitaria outros tantos de barro molhado.

A estátua ganhou um chapéu igual ao dos vaqueiros; o rosto, cobriu-o com uma barba curta; pôs um cajado num dos braços; nas costas, uma trouxa com presentes sobre uma bata de beato sertanejo; nos pés, a alpercata de vaqueiro; ao invés do trenó puxado por renas, sentou o velho num carro de boi. Terminou tarde da noite, com o corpo, sobretudo o rosto, salpicado de água rosa.

No dia seguinte, Goyaninha comentou nas esquinas que Alípio do Carmo criara um papai Noel com rosto mirrado de retirante. A prefeitura, com o apoio dele, levou-a para expor no corredor do prédio, no acesso ao gabinete do prefeito. A imprensa compareceu, ele ganhou fama. Pediram-lhe autógrafo, ele garranchou o nome, do modo como se alfabetizara. Recebeu uma ajuda em dinheiro para a estátua ficar na prefeitura. Encomendaram-lhe meia dúzia de outras estátuas; gente de fora, atraída por seu jeito próprio de conceber os santos.

A cidade, no costume de ver o papai Noel do modo como era visto nas lojas, um velhinho gordo, bonito, rejeitou-o. Ninguém o encomendou, por ser feio, não prometer bom tempo.

Com o dinheiro que ganhou da prefeitura, da venda da estátua a colecionadores, mudou-se para outra rua. Fez da nova casa, ateliê, moradia, loja. Todo dia visitavam-no; gente de fora, ninguém de Goyaninha. As vendas caíram, as encomendas de fora aumentaram.

Deixou de freqüentar a igreja, ele. Não tinha mais o pai nem a mãe, ninguém para pôr-lhe rédeas. Afastou-se do credo impositivo do padre, consolidou a alforria. Ainda assim, padre Aragão foi visitá-lo. Não gostara da romaria em torno da estátua na prefeitura; “É idolatria”. Alípio não criara seguidores; a breve fama de que gozara, os sussurros de censura, os raros elogios incomodaram o padre no entanto. Achou-se, o religioso, no dever de zelar pela crença dos devotos do Carmo. Alípio não fora registrado no cartório com o segundo nome. A mãe, o pai assim o chamaram para tributar a santa, Nossa Senhora do Carmo, por tê-lo curado do impaludismo.

O padre encontrou-o no ateliê, com as mãos no barro molhado. Deu-lhe uma cadeira, Alípio, sentou-o em volta de espátulas, pincéis, estiletes, vasilhas com água, panos sujos; tudo salpicado com a água do barro.
- Encontro-o com a mão na massa – convinha conversar sem modos de sermão. Os olhos de inquisidor, não pôde evitar.
- O senhor tem o terço na mão. É a fé do ofício ou uma ameaça a um devoto desobediente?

Casado, Alípio pusera na frente da loja o nome pelo qual se tornara conhecido. Padre Aragão não dissera, mas julgara-o no uso de um espólio que ele, o padre, concedera... ou fora o mediador da concessão.
- Não. Você não prega contra a Igreja. E só a Santa Sé tem o poder da excomunhão...
- O senhor já está falando em excomunhão! Assim o senhor me assusta. Está segurando uma conta grande do terço. Em qual mistério está pensando?
- No flagelo que Cristo sofreu... Sofreu por todos nós.

Não escapou ao artesão o propósito do padre, de lembrar que Cristo sofrera também por ele, Alípio; e Alípio fora, estava sendo desagradecido.
- O senhor lembra do sofrimento de Cristo... Todo esse povo que mora na beira do rio sofre diariamente. Eles não têm o que comer. A usina despeja a calda no rio, os peixes morrem. Nem o caranguejo sobrevive. É um flagelo.
- Eles não têm fé.
- Perderam a fé nos homens, no usineiro, na autoridade que nada reclama por eles. Nenhum deles tem a barriga como a do padre, por exemplo; cheia, sem fome.

Padre Aragão contrafez-se, ajustando o cinturão para cima da cintura; pareceu mais gordo, tornou-se ridículo.
- Não o chamo de insolente em respeito à memória de Higino e de Zefinha; mas bem que eles me teriam autorizado a dizer isso.
- O senhor já disse. Não precisa pedir autorização a ninguém.
- Não vamos brigar, nunca brigamos. Vim para lhe fazer um pedido. Quero que você volte a puxar a corda dos sinos do Carmo. O povo virá à missa a seu chamado... E assim suas estatuetas serão aceitas pelo povo de Goyaninha. Eu mesmo falarei bem delas. De lá de cima... do púlpito.
- E em troca, o que devo fazer?
- Os anjos que você molda, dê-lhes a aparência de querubins, de serafins inocentes.
- Um anjo com fome não tem nos instintos tanta inocência...

Levantou-se, Alípio, trouxe dos fundos do quintal, onde instalara o forno, um anjo com asas caídas, cabelo riçado, camisa aberta de cima a baixo, sem botões; calça amarrada com um cordão, arregaçada nas duas pernas; descalço.
- Esse anjo não foi batizado na pia de mármore da igreja; batizou-se na água suja de calda, sem peixe, da beira do rio. Se eu fizer o seu rosto redondo, como os anjos barrocos da igreja, eu estarei mentindo.
- Você ainda é moço, Alípio. Arrependa-se. Volte para o seu lugar na igreja, na sacristia. Puxar o sino é acordar os anjos!
- Os anjos não dormem. O senhor mesmo já disse no sermão. Não, padre Aragão. A esse custo, prefiro trabalhar de graça.
- Vou rezar por você.

Sentiu o cisma iminente, o padre. A fixidez de inquisidor nos olhos, nutriu-se nas memórias do Santo Ofício. Rezou por Alípio, presumindo-o no fogo de um inferno. No convento, recolhido, rezou as contas do terço. Creu-se ungido de santidade.

Sem o do Carmo no nome, Alípio não teria obtido fama; obteve-a com o desagrado do padre, que logo informou ao arcebispo da teima do artesão. Obteve-a por causa da igreja, do Convento do Carmo. Padre Aragão supunha-se acima dos pecados do mundo, cozendo rezas, a gordura do corpo. Com a fama do santeiro, carregando nome e espólio dos carmelitas, viu-se saqueado.

Alípio quis livrar-se do nome que o ajudara a se tornar conhecido. Nas ruas, na rua onde morava, quem o procurasse não tinha dúvidas ou carrego de remorsos. Só a mulher chamando-o pelo primeiro nome; inda assim, por imposição da rotina de economia dentro de casa.

Um vereador homenageou-o por ter atraído turistas; podia ter evitado o costume, visto que a intimidade com o microfone o livraria de zombarias inocentes, mas cravou na voz o Alípio que fora curado de impaludismo com a ajuda da santa do Carmo. Ele, Alípio do Carmo, curvou-se à santa, ao discurso do vereador, ao inconformismo de padre Aragão.

Para vingar-se, trabalhou sem poupar as costas curvadas, acocorado no amasso do barro. Sentado num banquinho de madeira, agachou-se, alongou os braços.

As encomendas cresceram. Ele resolveu pintar sem nunca ter riscado uma tela. Juntou a cor extraída do barro vermelho, com a cor escura do massapê; acrescentou querosene, resíduos de indústrias, obteve diferentes tons. Olhando as imagens, transpôs à tela de pano de saco de açúcar, um anjo tocando sanfona, cego, pedindo esmolas numa feira de rua. As asas, nas costas, arriadas. Não voaria, o anjo. “Um retirante”, disse o artesão.

Nos domingos não punha as mãos no barro, não segurava o pincel. De manhã, sentado numa espreguiçadeira, ao lado de uma estátua grande, de sua altura, foi surpreendido por homens bem vestidos; um com o paletó de linho da mesma cor da calça. Um sociólogo na frente de outros. Acompanhavam-no fotógrafos, repórteres. O sociólogo viera para entrevistar-se com o santeiro.
- Muito prazer em conhecê-lo.

O homem, magro, sentara-se sem cerimônia na cadeira oferecida por Alípio. Tinha voz cava, queixo saliente, cabelos ralos, quase careca. A comitiva ficou em pé.

Alípio, sem se levantar, empertigou o tronco para ficar de igual para igual com ele. O sociólogo anunciou-se, como para se justificar da inquirição a que submeteria o artesão. Os outros riram, conluiados. Os flashes pipocaram. Do lado de fora, na calçada, curiosos se juntaram.
- O senhor é o primeiro santeiro a não moldar os santos conforme as imagens da Igreja. Sabe que pode atrair a antipatia dos católicos? Do padre da cidade?
- O padre já me chamou a atenção. Quer que eu volte para a igreja, mas me cobra um preço muito alto. Não tenho como pagar...
- Como assim?
- Ele quer o meu juízo.

Repórteres anotaram com insânia. Os flashes flagraram a teimosia no canto da boca de Alípio. Piscou os olhos, ele, sem se despregar das palavras do outro.
- Não quero convencê-lo de nada, mas admiro sua coragem. Não sente nenhum remorso quando risca um traço sinistro no rosto de um santo de barro? Não são imagens abençoadas, mas têm inspiração religiosa.
- Sentiria remorso se desse as costas aos anjos de carne e osso que vivem na beira do rio. Ninguém faz o retrato deles porque são feios e magros.

O homem comprou duas estatuetas, a comitiva o imitou.

Dia seguinte, no refeitório, padre Aragão leu os jornais. Os títulos não tinham mimos aos anjos barrocos. A manchete insinuava que o sociólogo, com a autoridade da ciência, legitimara a rebeldia anticlerical do artesão negro, filho de padeiro com lavadeira.

O telefone tocou na sala de reuniões. Ele levantou-se.
- Bom dia, reverendíssima.
- Padre Aragão, você deixou escapar uma ovelha de seu rebanho... E não faz nada para trazê-la de volta. O que está fazendo você, o que está dizendo na pregação!?
- Prego o evangelho com a correção que vosselência me ensinou.
- Já disse a esse homem que suas estátuas atentam contra as escrituras, contra os céus!?
- Já. Mas ele recebe turistas que compram seus anjos...

O bispo interrompeu-o:
- Que anjos, padre Aragão! Um incréu não pode conceber anjos!
- O que ele chama de anjos, reverendíssima. Suas imagens. Os turistas são atraídos pela sarna que ele põe nas mãos, no rosto de cada uma.
- Santo Deus, como faz falta o Santo Ofício – socorreu-se no Santo Ofício, compungindo-se na própria exaustão. Depois, retomou as imprecações. Velho, temia que o padre absorvesse os sinais de fraqueza nas sílabas arrastadas.
- Vou aí. Vamos conversar com esse homem, trazê-lo para o caminho de São Tiago. Sua Santidade está se preparando para visitar a capital, será recebido pelo povo católico. Levaremos esse homem a sua presença. Mas terá que abjurar seus “santos” – se o padre o visse, teria notado um zumbido, um tiziu de língua de serpente na boca do bispo – na frente do papa, de público. E receberá a bênção do santo padre. O povo se arrependerá de todo pecado do mundo.
- Não vejo como... – tentou o padre.
- Não subestime a força da Igreja – calou-o.

Alípio do Carmo soube que o papa estava de mala pronta para o Recife. Inda que aliviado sem o jugo do padre, não achou ruim nutrir-se na fama da padroeira do convento. Não freqüentava a igreja... não com a assiduidade instigada pela mãe. Zefinha cantara no coral, nas vésperas das novenas; deitava-se com travo de círio. Alípio não gostava, lembrando-se do negrume dos velórios.

Quando engolira a hóstia, sentira-se profano, com remorsos. Como não desatara o nó da crença, um domingo ou outro, enroscando-se entre fiéis, nas paredes, com os olhos nas pinturas da abóbada; ouvia a voz remota de padre Aragão. Escondia-se do coroinha; se pusesse dinheiro na sacola de pano, o padre julgaria-o arrependido.

Valeu-se do cisma parcial com a Igreja, mais com o pároco do que com a Igreja, para ver o papa. O papa é santo por ser culto; logo, receberia de suas mãos uma vistosa estatueta, de um anjo insatisfeito com a fome.

Alípio preparou a bagagem também, para viajar. Encomendou o primeiro paletó, calça e paletó de linho; camisa branca, mangas compridas... nada de gravata; por causa do calor.

A visita do papa remeteu-o a episódios bíblicos. Sentiu-se estranho, transfigurado.

Experimentou a roupa nova na alfaiataria. Olhando-se no espelho, chamou a atenção. Mestre Lira, o alfaiate, ateu, anticlerical, fizera da alfaiataria uma tribuna contra a Igreja; envelhecera ali. Embolsou o pagamento; por costume, incitou-o. Os clientes ouvindo-o:
- Tenho uma sugestão para você: sugerir não é impor. - O velho confortou-se na lisonja do verbo – Faça uma estátua de anjo com barrete na cabeça; um barrete pintado de branco, a cor com que os papas se arrogam de puros. Mas deixe que dois chifres cresçam na cabeça do anjo, furando o barrete; e dê de presente ao pontífice.
- Serei excomungado de uma vez!
- Farão romaria no seu ateliê! Os romanos virão de Roma para comprar suas peças. Será tão famoso quanto Michelângelo!
- Não quero ser igual a Michelângelo.
- Faz muito bem... Michelângelo teve a ajuda de um mecenas. E sua obra foi feita por encomenda... Encomenda da Igreja! A sua obra, Alípio... Refiro-me a você, nasceu à margem da Igreja, é tão marginal quanto os pobres da beira do rio. Você vai dar um presente ao papa! Vão dizer que você quer se reconciliar com o evangelho de padre Aragão...
- Nas mãos de padre Aragão, o evangelho é pequeno. O mundo é grande para eu mostrar o meu trabalho.
- Mas você vai dar um presente ao papa. Acredita que o papa é a palmatória do mundo?
- Não sou submisso ao papa, mas devo-lhe respeito. Ele pode não abençoar a minha estátua, mas vai julgá-la. Isso para mim é o bastante.
- Desobedecer à Igreja é um direito de qualquer um. Você fez isso com dignidade. Mas não se esqueça que para chegar junto do papa, terá que se ajoelhar, beijar a mão dele. Vai renunciar a seus direitos?
- Não vou renunciar ao que nunca tive como meu. Nunca fui da Igreja. Não dei certo como acólito.

Despediu-se, Alípio. Mestre Lira, inconformado, acompanhou-o à porta, segurou-o num dos braços, sussurrou. Já dissera sem rebuços, mas travestiu-se de dissidente oculto, no esforço de buscar cumplicidade no artesão:
- Terá que passar pelo cardeal Marcinkus, um inquisidor confesso!

Em casa, Alípio vestiu a roupa na frente da mulher, olhou-se seguidas vezes no espelho da sala. Depois, ainda com o paletó, suando na testa, segurou no calendário da parede. Contou os dias que o separavam da visita do papa.

Semana seguinte, no sábado à noite, surpreendeu-se com a visita de padre Aragão seguido pelo bispo. O bispo estava com o barrete na cabeça, roxo brilhante. Lembrou-se da sugestão. “Dois chifres, um de cada lado da cabeça.”
- Meu caro Alípio... – Não pôde gritar, o bispo, mas ergueu os braços, abriu a boca; deu a impressão de ter forças para manter o povo sob sua fé.

Alípio, hesitando entre beijar-lhe a mão ou acudi-lo nos braços, balbuciou o que a própria língua não soube explicar. O bispo segurou-o para dar-lhe confiança nas inseguras pernas.
- Todo o povo vai receber o papa. E com você não será diferente. Estou certo? Você vai receber a bula papal. Vai provar a todos que não é um herege. Receberá a bênção do papa. Servirá de exemplo para o mundo.
- Vou levar um presente para o papa.
- Ótimo. Posso saber qual é o presente? Não pode ser um anjo retirante, magro. Veja o físico do papa... É um papa com saúde, tem músculos.
- Não. Um anjo retirante não teria forças para ir até junto do papa. Será a estátua de um adulto, com força para chegar junto do papa.
- Muito bem, Alípio. Com a sua habilidade de artesão e a santidade do papa, o povo católico vai reverenciar seu trabalho. Mas dê a cada um de seus anjos, feição bíblica, pura. A obra da Igreja também está em suas mãos.
- Como faço para chegar junto do papa?
- Eu estarei em cima do palanque. Verei você.

O bispo despediu-se. O contato com o artesão tornara-o obediente, pensou. Nenhum católico, até ali, se insurgira contra a Igreja a ponto de afrontar a autoridade do bispo; menos ainda a do papa.

Referira-se à habilidade de Alípio. O artesão creu-se no apogeu de sua carreira. Com apuro, fez uma estátua de cangaceiro com duas asas nas costas; pôs-lhe revólver na cintura, punhal, chapéu de couro na cabeça e um par de óculos com aro fino, iguais aos de Lampião. Os cabelos cacheados abaixo das orelhas. Por todo o corpo, de cima a baixo, sob as armas, uma bata lembrando a túnica de um anjo. O rosto não tinha traços de bandido, posto que o estilete dera-lhe uma feição sem rancor.

Alípio chegou com as primeiras levas na frente do palanque. A estátua estava numa caixa de papelão, com pouco mais de um metro de altura. Foi avistado pelo bispo, que acenou para ele, autorizando-o a subir entre os seguranças. O bispo cercou-se de cuidados, mandou que ele subisse pelos fundos. Em cima, o bispo abriu a caixa. A imagem, mostrando-se, seguiu a apoplexia do bispo:
- Volte! Volte daqui!


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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