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Contos
18/10/2008 - 14h01
O gato
Laís de Castro
 

Era um gato repulsivo, acabrunhante, como uma fatia de um triângulo isósceles, um olho só na frente, um pedaço de rabo e as quatro patas rematadas para trás. Rajado, como seus três irmãos perfeitos que haviam sido atirados muro adentro daquela chácara velha como a Sé de Braga, de antigas árvores e velhos móveis, onde só as pessoas tinham idades variadas. Já vagavam por ali quatro gatos, livres, que ganhavam sua ração de comida diária e mais quatro não fariam nenhuma diferença, não faz mal, deixa eles aí, se jogar na rua os bichanos morrem.

No início, pequeninos, naquela concentração comum aos felinos, ninguém notou que entre eles se criava aquele estropício, aquela náusea ambulante que depois viria à luz para pasmo geral. Eles se amontoaram num canto da despensa, de onde se via o chão da cozinha de cimento lisinho, pintado de vermelhão, aquele pó que se junta ao cimento para lhe dar cor desde sempre e que andou ficando na moda por uns tempos, em verde, em ambientes de decoração sofisticados, sabe-se lá o que as pessoas inventam. O fogão a lenha parecia uma bolha nascida do chão, meio arredondado, as arestas desgastadas pelo tempo. O fogo, encostado aos canos que serpenteavam ao seu redor, esquentava a água dos chuveiros e aquecia também a própria casa. Sobre o fogão, lá em cima, um barbante encardido sustentava lingüiças gordas que, ao sabor da fumaça, deixavam cair gotas de gordura sobre a chapa de ferro, ecoando a lembrança de fritura inexistente e espalhando um cheiro de dar água na boca até no mais inapetente dos homens. Essas lingüiças defumadas eram usadas na medida da necessidade e renovadas a cada vez que se matava um porco no chiqueiro. Diante do fogão, Filomena, a tia Nastácia que Monteiro Lobato não teve, de pé, cozinhava há tantas décadas, que mais parecia uma estátua de bronze, fincada ali, ereta e eterna.

Os gatos começavam a ir e vir, da maneira que podem ir e vir filhotes pequeninos, ainda de olhos meio fechados e ninguém se ocupou deles até que o hediondo se mostrou, ou foi visto, pobre coitado, desencadeando uma gritaria em cadeia, uma correria histérica como se tivesse chegado ali um frankenstein em carne e osso, instalando no ar uma bomba de pavio aceso, prestes a explodir, mas que ficava na ameaça. Cada mulher que o fitava tinha, por ordem, primeiro um chilique e depois dava uma opinião é bicho do diabo, Deus me proteja, isso vai trazer sete anos de azar, nunca mais vou dormir de noite, socorro, valei-me me São Francisco, que este bicho nem o Senhor gostaria mesmo sendo protetor dos animais.

Apenas a menina não gritou, foi chegando e tomou-o ao colo, fez um carinho nas costas pontudas, na cabeça disforme e decretou que aleijão ia ser dela e se chamar Cambuquira. Porque cambuquira menina, cambuquira é broto de abóbora e esse viscoso está longe de se parecer com um, escolhe outro gato e outro nome, pega aquela bichana de olhos azuis ali, tão linda, agora ficar com esse troncho no colo, vão falar na vila que você endoidou como o Zé Preto que precisou até amarrar, deixa que eu cuido dele, creindeuspai que a desgraça não se amoite nessa casa.

O problema estava plantado quando os homens chegaram do trabalho na hora do pôr-do-sol. Mata não mata, depois a gente resolve, ninguém sabia se ouvia o sábio conselho do padre sobre o inédito, demoraram tanto pra resolver que o bicho foi ficando, ficando, a história sempre se repete, ninguém quer ser responsável e a menina pra cá e pra lá com aquele erro genético no braço. Foi então que se deu o acontecido e todos vão dizer de novo que eu estou mentindo e eu vou acrescentar ainda uma vez que na minha família tem de tudo mas não tem mentiroso.

O gato era fino, já falei, como um triângulo fatiado. E a sala da casa era de tábuas que, de tanto ser lavadas, friccionadas, ungidas e atritadas, além de lisas como vidro, foram criando frestas entre si. Todo mundo já sabe o que vou dizer e foi isso mesmo que sucedeu, o bicho monocular caiu numa destas frestas, por onde nenhum gato comum passaria e lá de baixo, danou-se a expor seu miado gutural ao mundo. A menina se desesperou quero Cambuca de volta, até apelido carinhoso ele já tinha como se pode concluir. Miava ele embaixo e chorava ela em cima, batendo o pé e pedindo ao pai que arrancasse uma das tábuas para soltar o bichano, tenho que soltar mesmo, senão esse excremento morre lá embaixo e a casa inteira vai miasmar, o pai, contrariado.

Seja feita a vontade do destino, esse desinfeliz tinha que cair ali, vai deixar uma cicatriz no chão da sala, a tábua nunca mais será a mesma. O trabalho não foi pouco, duas horas serrando dum lado e do outro, tiveram que se revezar os homens, e enfim, exaustos como depois do amor, tiraram a maciça tábua de aroeira do chão. O infame pulou no colo da dona e ganhou beijos, as mulheres resolveram aproveitar para limpar o buraco e adjacências e os homens avisaram que a recolocação seria feita no dia seguinte, indo para o banho frio que o fogo já morrera no borralho há muito tempo.

O episódio inédito espalhava pela casa uma excitação incomum, tudo lá era tão monótono, as mulheres davam risadas nervosas enquanto esfregavam a lacuna negra que parecia uma cova à espera de um corpo, quando uma delas topou com algo resistente, empurra o rodo daqui e dali e não vai, empurra mais e nada. É isso mesmo que você pensou, porque a vida imita a arte e ninguém inventa a roda, tudo acaba se parecendo, esse episódio seria só o primeiro de dezenas de outros que você vai ter que inferir. A casa era deles há mais de 70 anos e, com certeza, aquele pacote tinha sido depositado ali na época da construção. E trazia barras de ouro, tantas, que tornaria rica, bem rica mesmo, a família inteira, até Filó, num piscar de olhos. Eles estavam atônitos, perplexos, tomados de assombro e com medo, teria o tataravô mandado o gato porque aquele bando de incompetentes nunca conseguira dinheiro para uma reforma? E se eles tivessem jogado o bicho no rio?

Primeira providência: combinaram de não contar nada a ninguém até ter certeza de que aquilo era ouro, só poderia ser, o velho era podre de rico, acendia cigarro com nota de dinheiro, gastou tudo, era odiado pelos descendentes por isso. Agora teriam de rever aquele sentimento de ódio e trocá-lo por respeito e amor, ia ser bem difícil, como trocar a mulher ou o marido pelo pior inimigo, de repente, ter que amar quem a gente abominou a vida inteira. Era complicado era tudo culpa daquele animal infame, mas sem ele ninguém teria o ouro, também com o nauseabundo iria ser preciso recodificar o sentimento, estavam todos confusos quando ouviram aquele barulho seco. Vou falar logo, sem rodeios ou demandas: tia Lótinha caíra no buraco da tábua e estava morta. Ele cumpria seu destino de cova rasa. Causa mortis: pancada seca na têmpora e não vou mais tocar neste assunto. Uma no cravo e outra na ferradura. Bem, ela teria um funeral de luxo, se é que pode servir de consolo a alguém. E o dinheiro dos sequilhos que vendia, antes essencial como o ar que respiravam, agora não faria falta nenhuma.

Posso dizer, e mais não digo ou direi, que um arrepio gelado percorreu a espinha de todos, menos a da menina. Ela adorava a idéia de ser rica e detestava a tia morta. Aquele gato começava a lhe parecer muito útil.


Nota do Editor: Laís de Castro é jornalista, há 18 anos no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.

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