Uma vez entrei nos fundos da venda de Joca Barbosa; não nos fundos do quintal; no depósito anterior ao balcão. Estava escuro. Descalço, pisei em papéis soltos, sacos e tábuas de caixotes. Olhei as paredes, procurando especiarias que dessem sustento à gordura que ele, a custo, mantinha sob o grosso cinturão. Eu estava acompanhado de seu neto; podia bisbilhotar à vontade, fartar-me de informações no exame de minúcias ali ocultas. Não era um comerciante próspero, o velho; era um prestidigitador. No manuseio de quinquilharias velhas, era capaz, ele, de convencer a minha ignorância de que o grosso papel de embrulhar charque também seria útil no empino de papagaios. Joca tinha ombros largos, aumentados com o paletó de brim; com o chapéu de feltro, a silhueta refletida nas paredes era de um exorcista sem dotes divinos. Divina, para a clientela, era a cachaça preparada por ele, com raízes e cascas de laranja; misturadas numa garrafa com álcool de usina e água. Batizou-a com o nome Perua; popularizou-a. Saí de lá, inda que frustrado, querendo saber mais sobre ele. O mofo, a poeira, teias de aranha, por certo alguma lacraia fruindo o culto do desleixo. A venda não vendia cerveja, só a cachaça. Quando alguém queria mijar, teria que cruzar o monte de caixotes sem uso, não tocar nas paredes para não empoeirar a mão, e abrir a porta do quintal. Ali, o mato se amontoara. Havia urtigas e tinhorões. O mijo era escorrido da própria porta. O cheiro de urina misturava-se ao verdor das carrapateiras. Também Joca fazia o mesmo trajeto, fazia-o de olhos fechados, crendo-se o fauno senhor de seus domínios, respeitado por escorpiões e víboras. Sem lavar as mãos, servia copos, destampava a cortiça da garrafa de pinga. Descendo para o copo, os pinguços, olhos aquosos, pés inchados, ouviam a sonoridade de um licor. Os copos, lavados no enxágüe ligeiro, inda que com sabão, eram cloacas de vidro. Não eram enxugados, para a boa fortuna dos useiros. Ora... se pano houvesse, teria a mesma fuligem das paredes. Ninguém os cheirava antes de pôr na boca. O olfato de cada um, bichado, denso, não absorveria a inhaca da água na bacia. Quando saí de sua venda, ele me cumprimentou, chamou-me pelo nome de meu pai; interrompera sua conversa para, da garganta de bruxo, enfeitar-me com um elogio denso de perguntas. O prestidigitador provocara-me, queria notícias de meu pai, àquela altura ressabiado com a defenestração de Goulart. Não respondi, mais por intimidação do que por inteligência. Olhei para trás. Os homens, sentados em caixotes pequenos, tinham as pernas cruzadas; enquanto não punham o copo na boca, coçavam os pés, alguns removiam sujeiras das unhas com palitos de fósforos. Os palitos eram afiados com suas unhas compridas, amareladas. Joca não tirava os sapatos dos pés; não usava meias, mesmo que os sapatos tivessem cadarço. Não usava, por avessia, cuecas; justificava, com o canto da boca arriado, a modo de intimidação: “Pra quê, se ninguém vê!?.” Mesmo assim, é fácil imaginá-lo dentro de uma samba-canção comprida, quase ceroula, feito um colete espremendo-lhe o couro. No seu tempo, não havia zorbas. Imagino-o manuseando uma zorba: “Isso é roupa de fresco!” A conversa era preguiçosa. Quando lhes faltava assunto, o vendeiro escolhia o mais empapuçado dos pinguços para antever-lhe a morte anunciada nos olhos. Era sentencioso, e o ofício dera-lhe o prenúncio da morte. Respeitavam-no por isso, por isso ninguém o tinha como velho explorador... Tinha um filho, enfermeiro de pronto-socorro. Washington Macumbeba evitava bebericações, não freqüentava a venda do pai. Falava pelo nariz, fanhoso de voz grossa. Herdara do pai a gulodice. Sua primeira refeição, de manhã, era uma jaca com mais de cinqüenta bagos; depois, bebia água aos solavancos, respingando o queixo, coçando a pança. Convidado para almoçar na casa de um amigo, recusou, saindo-se com o chiste: - Não vou! Naquela casa, até o sino, que tem a boca pra baixo, bebe... Os amigos, com razão, comeram e beberam com meia-alegria. Joca Barbosa morava numa casa com a esposa, gorda como ele. Era vizinho da casa do filho. Não tinha amantes, ao contrário de muitos de seus amigos. À noite, quando saía, sem convidar o filho nem a mulher, era um peregrino. Fuçando ruas desertas, afastadas do centro de Goiana, descobria cerimônias de umbanda; cerimônias de homenagens a divindades afros. Os rituais eram regados a cachaça e iguarias de cozinha. Não bebia, ele, mas dava conta de meio caldeirão com perus guisados. Por isso Washington não era chamado pelo pai, para não compartir o legado da gula. Em casa, a mulher oferecia-lhe café. Ele bebia mastigando, com saudades do derradeiro naco de peru. O sono pegava-o como a um menino, rápido, sem resistência; depois, vingava-se com roncos sonoros. Dormia numa posição só, com o ventre para cima; era o resultado do conluio do estômago cheio com as narinas fechadas. Os lábios, sem guardar neutralidade, tremelicavam na sonora balbúrdia. De manhã, acordavam-nos os galos ainda nos galhos baixos da jaqueira nos fundos da casa. A mulher, na cozinha, coando o café para despejar no bule de alumínio. Ele, no banho, com o uso de uma cabaça para tirar a água da tina de madeira. Escovava os dentes... e despedia-se da escova por mais 24 horas. Os fundos da casa eram um sítio de sua propriedade; o sítio de Joca Barbosa. Ele o percorria com uma camisa branca, de algodão felpudo. Era escuro o local, coberto pela copa das jaqueiras, mangueiras. O fauno metia-se em teias de aranhas; destroçava com a sola de borracha dos sapatos, gravetos soltos; no São João, juntava-os num dos braços enquanto os recolhia com o outro, para a fogueira à noite. Por agora, tinha em mira jacas maduras, mangas. Depois de fartar-se, fartar o filho, posto que o infarto também resulta da sofreguidão da fome, punha os frutos numa cesta de alça; levava-os para a venda. Punha-os sobre o balcão, na extremidade, junto à prateleira. Duas razões o moviam a isso: prateleira é lugar de mercancia, não de doações generosas; e o espaço do meio do balcão, nesse os pinguços esticavam os braços para o entorno da cachaça, ácida e licorosa. O comércio da jaca, só por si, avulta no registro dos costumes. A fruta não era vendida inteira. A feira de Goiana tinha-a em abundância, moles, duras. E os moleques, petisqueiros todos, tinham pouco dinheiro. A compra era feita por fatias, nacos que incitavam a cobiça dos olhos. Joca cortava os frutos em retângulos; dir-se-ia uma simetria de marqueteiro, em tempo e lugar onde não havia o recurso do marketing. Não era marqueteiro, mas um estrategista instintivo. Artes de bruxo. Uma semana para vender menos de meia dúzia de jacas, duas dezenas de mangas. As moscas eram repelidas com a mão, com a largura da mão. A manga do paletó seguia o movimento. À noite, hora de fechar o negócio, os frutos eram cobertos com um pano branco, de cozinha; que da cozinha, em sua casa, fora desterrado para o bem da saúde de Joca Barbosa e de sua mulher. A noite que o veria passar na frente da venda, à cata de cerimônias de umbanda regadas a bodes na panela, ocultava portas e paredes de seu negócio. Havia apenas um poste de luz, do outro lado da rua. Ninguém se dava conta do desamparo, do abandono do local. A areia da rua sem calçamento, cúmplice dos estragos nas paredes, era revolvida pela inquietude dos moleques. Não se via, àquela hora, nenhum pinguço misturando-a com a cusparada espessa; dormiam o sono do éter manipulado pelo bruxo. Joca Barbosa não infundiu na cachaça a manipueira brava, venenosa. Os fregueses, no uso da poção, morreram antes dele. Joca morreu com o estômago fornido. Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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