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Contos
14/09/2008 - 16h07
O adultério de Teresa
Marco Albertim
 

O relógio da sala soou oito vezes, soou tedioso, sem conexão com compromissos ou lembranças. O ponteiro menor, inclinado, apontou para a janela. Há cinco anos, quando ali fora posto, o ponteiro apontava para o horizonte longínquo, do outro lado do mar. Só agora, movida pelo mesmo tédio, Teresa levantou-se do sofá e debruçou-se na janela. Viu uma lua que já apreciara em boa companhia, e estranhou-se por ter passado tanto tempo sem se dar conta de que a lua poderia ser cúmplice de seus sonhos.

Pensou em telefonar para o ex-marido. Em vez de sentir-se pronta para o adultério, experimentou maturidade no impulso; deixou escapulir um riso preso no canto da boca; ainda que preso, o riso deu-lhe a consciência de uma liberdade iminente. Riu de quando se separara do então marido, convencida de que nunca sentiria falta do macho que lhe provera de luxúria em abundância; tanta que a deixara aborrecida, farta. Casou-se outra vez. O marido muniu-se da experiência dela, e a proveu com luxúrias módicas; certo, ele, de que a moderação conjugal seria a receita para o casamento duradouro. Com o tempo, Teresa julgou-o fracote, monótono; daí em diante, sentiu falta dos calafrios que Arcanjo lhe dera. Arcanjo, o provedor.

Teresa voltou para o sofá e segurou o telefone sem hesitar; não discou logo, pôs o fone sob o queixo para ter em conta as razões de seu pensamento; creu-se quase feliz porque o passo que estava prestes a dar, não o faria a conselho de alguma amiga, tão comum quando era adolescente. Agora, teria prumo na voz, sem queixumes copiados de cenas de novela. Arcanjo não teria susto, nunca fora de sustos. Ela que desperdiçara a força dele. Distinguiria, sem perguntas, o motivo do telefonema; melhor assim, não tinham mais os meneios da sedução e seria como se amar no escuro, mudos, sabendo cada um as reentrâncias do corpo do outro.

Na primeira chamada, encheu-se de esperanças para coibir um resto de medo. A esperança, inda que resultasse em malogro, restaurou uma emoção velha; sentiu alívio com o remorso sem dor. Sentara-se, inerte; olhou para o relógio e deixou-se levar para a janela. Se desligasse o telefone antes que ele atendesse, daria prova de covardia, de descaso com seus impulsos; o descaso com que deixara Arcanjo, o mesmo de que se cria livre. Ele, àquela altura, vinha andando na direção do telefone; com desembaraço de homem livre. Ela correu, certa de que o tomaria pelos braços; correu sem noção do simulacro de familiaridade. Tantos anos distantes, agora reatados pelo fio do telefone.

Ele não se mostrou surpreso, embora surpresa sentisse; fez questão de nada perguntar porque ela, colada ao aparelho, mostrou-se confessa. “Estou me sentindo só, por isso telefonei.” Não era isso que tinha na mente, não pretendia se entregar no primeiro anúncio de sua voz; mas a confissão saíra como um fio de gosma impossível de reter na boca cheia de saliva. Entregou-se e não tinha como recuar; recuar por quê? Do homem que a tirara da incômoda virgindade quando completara, ela, 20 anos? Tinha com ele, pois, uma dívida de gratidão. Queria dizer muito obrigada, mas se passaram vinte anos. Depois mentiu, dizendo que estava ocupada; mentiu para reter a primeira confissão, prenhe de cabritismo. Um minuto calados, só o fio da linha transmitindo a respiração de cada um. Ele suspeitando dos seios dela pulsando sob o aparelho, os bicos para cima, acudindo por amanhos. Ela, fruindo o silêncio para ser amanhada no escuro. Resistiram. Ela despediu-se confusa, poltrona, tremendo a língua. Há anos perdera o costume de despedir-se com carinho. Não demorou cinco minutos, ligou para ele de novo. “Não estou ocupada, posso sair”.

Encontraram-se uma hora depois. Arcanjo sentou-se sem constrangimento, sem logros para a ex-mulher. Teresa, trejeito sinistro, o adultério iminente, beijou-o na face; tão módica quanto o mofino marido. Se olhasse no espelho, veria o rosto mosqueado de suores finos, vermelho, com pregas descamadas sob os olhos; tinha pregas, só as percebia em casa depois do fastio com o marido.

Arcanjo não quis espreitar o rosto dela, abrigando-se na penumbra do bar. Mas tornou-se impossível não fazer um juízo sobre a incidência dos anos na aparência de Teresa. Olhou para sua cintura, outrora curvada, recôndita; podia olhar à vontade para supor mais curvas sob as roupas; mesmo comparando com o que conhecera há vinte anos, sentia prazer lúdico imaginando suas mãos tateando a fartura dos quadris de Teresa. “Decepcionado?” Ela não prendera a cintura com cintos inúteis, usava um tailleur com saia branca à altura do joelho, e casaco curto, no meio do abdome. Ao sentar-se cuidara de tirar o casaco, pondo-o sobre a coxa cruzada. O vestido colou-se aos quadris. Arcanjo esteve a ponto de elogiar a matrona. “Minha decepção com você foi no passado, e não foi com o seu corpo.” Incitou-a sem maltratar porque ela se tornara demente às sutilezas do pensamento. Riu, Teresa; a tensão deixou escapar um arremedo de riso; para ocultar o riso insofrido, prolongou-o por mais tempo, ficou ridícula.

Ele urdiu outro argumento no cigarro recém-aceso. A vodka com laranja ajudou a sujeitar a ameaça de mal-estar. Está desatinada, o casamento a deixa desatinada, pensou Arcanjo. Os anos tiraram dos dois a franqueza do pensamento; comportaram-se sem graça; tinham consciência disso, não confessavam por covardia e fingiam ser amantes antigos. Podiam se entregar ali, ocultos na meia sombra, subjugando a frouxidão dos gestos na cumplicidade adulterina. Mais que a precisão dos sexos, juntou-os a noção do erro que estavam cometendo. Teresa, disposta a se reparar pelos anos em que se privara de Arcanjo, julgava-se capaz de deixar que ele a fitasse por minutos nos olhos, vazando-a de crueza. Quanto mais ele revolvesse o seu juízo poltrão, mais a purgaria de seus pecados. Não queria reter a confissão de que se sentira só, queria mostrar-se só, submissa à autoridade dele. Ele a acudiu com propósitos de vindita. “Quero me desforrar do tempo em que não nos vimos.” Uma chuva de água-benta não a incitaria de tanta pureza quanto o propósito do ex-marido. Ela queria imolar-se para sentir-se viva. Só Arcanjo tinha o direito de conhecer cada precisão de sua tediosa vida. “Você é o único que conhece meus segredos.” Confessou com força inusual, pedindo amparo.

Duas horas depois, o cinzeiro se enchera de pontas de cigarro, os copos vazios davam conta de segredos vazados, de almas em trânsito para a purgação. Não tinham coragem de falar do passado, inda que cada gesto fosse a condenação dos erros que tinham cometido. Dançando, abraçaram-se, crendo no recobro da familiaridade. Os músicos, garçons, outros casais, o dancing escuro, proscênio entrevisto para a união adúltera. Redescobriram-se nas entranhas de um sentimento há vinte anos sumido; isso os deixava cegos para as rugas que a exaustão lhes traria depois do gozo.

Teresa absorveu o suor de Arcanjo, promiscuiu-o com o seu. Ele transmitiu a ela força, pressionando-a contra si. A noite passou-se, pois, sem agouros. Acreditava em agouros, ela, e persuadiu-se de atributos milagrosos; dançou como se estivesse numa via sem olhar para acenos de tristeza; queria ir até purgar-se de sua última culpa.

A luz acendeu. Ela foi para o toalete, enxugou o rosto sem reparar nas poucas rugas abaixo dos olhos; o cansaço... mais transe que cansaço embotou a noção das rugas. Penteou os cabelos, meia dúzia de mechas brancas ondulando entre as orelhas. Perfilou-se no espelho, senhora dos anos, amotinada contra as mechas brancas. Voltou para a mesa com o cigarro aceso. A orquestra demorou a tocar. Certa impaciência inquietou Teresa. Teria que fumar mais alguns cigarros para se ocultar nas brumas da fumaça. Ele ajudou, fumou com ela para se mostrar cúmplice; já mostrara sua superioridade subjugando-a ao ritmo da música. Agora teriam que se igualar nos enredos do adultério sob a lâmpada fluorescente. Mais bebida. Um prato com azeitonas serviria para compor a mise-en-scène de casal feliz. O garçom serviu sem olhar. Uma hora depois, a luz ainda acesa. Teresa se levantou três vezes para ir ao toalete. Arcanjo nada perguntou, não convinha perguntar. A claridade da luz flagrou-os num simulacro de união. Olharam-se, mudos, inquirindo cada um o juízo do outro. Tinham se abraçado no salão, agora não tinham coragem de se tocar. Salvo o ruído em redor, um vácuo se pôs entre os dois. Impossível se manterem calados por mais tempo. Arcanjo, generoso, insolidário à vista dos outros, resolveu falar. “Não está se sentindo bem?” Os anos o deixaram inapto no trato com mulheres. Teresa estava tão insegura quanto estranha entre os muitos casais. À pergunta do ex-marido, sentiu-se desamparada, porquanto até o garçom os olhava curioso, julgando-os numa lua-de-mel temporã. Tinha a obrigação, Arcanjo, de intuir-lhe os sentidos com precisão; fora seu primeiro homem, subjugara-a no verdor dos anos. A pergunta contrariou o código que Teresa engendrara na fruição da memória dos primeiros anos com ele. Vinte anos se passaram. A narrativa do que viveram, viva na memória dela, diluía-se, afundava no imprevisto vácuo. “Quero ir embora.” O tom não comportava objeção, nenhuma contrariedade a mais. Noutro tempo, ele teria ponderado a conveniência de permanecerem mais tempo. Não a amava, mas sentiu a mesma regurgitação de que fora vítima quando perdera a mulher há vinte anos. “Mas...!” Não articulou a sentença inteira por imperícia, por remorso pela paródia de macho que a pergunta deixara entrever. Ela levantou-se, beijou-o na testa; os lábios frios do gelo no copo. Ele, sem ação, quedado à súbita frigidez da ex-mulher. No táxi, ela não soube intuir se fora adúltera ou incapaz como o ex-marido.

Teresa dormiu como um anjo, no parecer do marido. Deitara-se depois de escovar os dentes, e arrotando o cheiro da bebida. Cobrira-se como de costume, mãos cruzadas na cintura, medonha. Fingia-se de medonha para evitar a aproximação do marido. Ele a beijara nos lábios sem que ela abrisse a boca; em seguida, cobrira-se feliz, ajuizando sobre o que sentenciara ser a abstinência da mulher.

No café da manhã, ela repetiu o rito. O marido comeu jurando que fora uma decisão acertada casar com Teresa; Teresa, dedicada, contida. Ele foi trabalhar. À tarde o relógio deu conta de um crepúsculo custoso, demente às precisões do mundo. À noite ele chegou à mesma hora de quando ela resolvera telefonar para o ex-marido. Jantaram. Ela comeu sem dizer uma palavra. Ele sentiu-se na obrigação de poupá-la de iniciativas para o conluio do sexo. Deitados, o marido tirou a cueca e sem que Teresa movesse um só dedo, levantou sua camisola, abaixou sua calcinha e penetrou-a até o gozo. Ela sequer gemera, com os olhos fixos no vácuo que deixara com o ex-marido. Acordou tediosa, com asco ao beijo que o marido lhe dera quando saiu para o trabalho. Foi para o sofá e fumou até o meio-dia.

Na semana seguinte, ele tateou-a na cama. Quando sentiu os dedos dele sobre os cabelos do ventre, afastou-o. Disse que estava indisposta, com dor de cabeça.

Duas semanas depois, ela tinha engendrado uma regra própria de recuperação da boa fortuna. O marido, submisso, achacado na pequenez do físico, insinuava réplicas ao modo insociável de como era tratado; insinuava... porque Teresa mantinha-se arredia, despótica. “Está bem, minha filha... Não seja por isso.” Em vez de sentir desforço no tédio que a sufocava, nutriu-se de ódio à poltronice do homem com quem compartilhava a cama. Anacleto vestia-se impecável no corpo franzino; ao falar com ela, ao fazer um módico rogo, desatava andrajos da voz. Não demorou e ouviu, monocórdica, a sugestão de separação. O homem contraiu-se mais, ruiu na cadeira onde se supunha sentado; tirou os braços da mesa depois de ter comido, e segurou-se em cada um dos lados da cadeira. Queria ter certeza de que também os objetos se conservavam ali.

Não se separaram. Teresa, tediosa, solene, distraía-se nas compras; comprazia a vaidade no refinamento de rendas nas calcinhas, nos sutiãs, nos vestidos. Encheu a toalete de casa com perfumes. Anacleto, concordando com tudo, aconselhou-se com o psiquiatra. Conformou-se em definitivo, depois de se inteirar dos ardis da menopausa de Teresa.

Ao fim de dois meses, ela voltou a telefonar para o ex-marido. Sentou-se de seu lado, no carro, instilando um sândalo intenso. Na avenida à beira-mar, ele a convidou para um motel. “Pare”, ela ordenou. Com o carro estacionado, foi a primeira a sair; do lado de fora puxou-o pelo braço. Na calçada, pôs o braço em torno do dele, obediente, dócil. Percorreram toda a extensão da calçada. A brisa acariciou a boa fortuna de Teresa.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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